“O Brics poderia ser o grande fiel da balança para uma distribuição equitativa da vacina”

Paulo Marchiori Buss, coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz)

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Até agora, a pandemia foi marcada pela escassez de insumos – de equipamentos como respiradores e máscaras no início da pandemia, provocando uma disputa mundial, o que agora se repete com a vacina. Como considera que essa experiência influenciará a indústria da saúde em nível global?

Incialmente, o mundo não acreditou na pandemia. Alguns países até tiveram tempo de se preparar – especialmente Estados Unidos e Brasil, já que o epicentro inicial da pandemia foi a Europa, e só depois se deslocou para as Américas. Apesar disso, ninguém da cadeia produtiva da área da saúde no mundo – fabricantes de respiradouros, protetores, máscaras, luvas, ingredientes farmacêuticos básicos tanto de vacina quanto de remédio – estava preparado, contava com estoques reguladores para o caso de uma pandemia. O mundo não acreditava numa coisa que cientistas diziam, de que para uma pandemia era uma questão de tempo. Pois tudo que vemos com a Covid-19 começa pela forma como caminhamos rumo a um apocalipse ambiental, com um modelo predatório e insustentável de exploração do ambiente, de grande redução de biodiversidade, de destruição de integridade de floresta, pois na floresta íntegra não proliferam determinados tipos de vírus que vivem em equilíbrio dentro de reservatórios, sejam eles morcegos, roedores, entre outros. Essa grande relação que chamamos de uma única saúde – one health em inglês –o já vinha sinalizando que íamos ter um processo pandêmico. O Ebola foi um caso; antes disso tivemos o SARS, que por sua vez foi antecedido pelo MERS. Todos, em última análise, são fruto da devastação florestal. Do câmbio climático, da alteração da biodiversidade, da forma como o capitalismo neoliberal se relaciona com o meio ambiente.

A pergunta que temos agora é: vamos voltar ao mesmo normal que nos trouxe até aqui ou vamos tomar juízo? O capitalismo vai ter que se repensar. Não é à toa que em Davos muitos CEOs promoveram uma ampla discussão sobre uma retomada verde (green recovering), e mesmo o FMI também já faz recomendações nesse sentido. Pode ser cortina de fumaça, reação aos 20% da população mundial que entendem o que está acontecendo e vocalizam, pressionam. Mas, se não mudarmos, teremos pandemias piores. Manteremos a Covid-19 como doença endêmica, e teremos outras enfermidades por coronavírus ou outros vírus, tão devastadoras como esta que vemos hoje. Por isso é preciso pensar em ter mais energia renovável, carro elétrico movido a hidrogênio, entre tantas tecnologias que visam à sustentabilidade ambiental. São coisas que podem mover esse mesmo capitalismo neoliberal, promover negócios entre empresas. Se seguirmos esse caminho, é possível que entremos em uma reconfiguração do capitalismo, do esquema de produção e consumo. E com isso consigamos adiar o apocalipse.

Como o senhor encaixa as principais atividades exportadoras do Brasil, como o agronegócio, nessa análise?

Nosso agronegócio tem um grande segmento sadio, e ninguém aqui está demonizando essa atividade. Mas existe outro grupo completamente irregular que destrói floresta para plantar. Enquanto tivermos uma política ambiental que permita isso, que seja predatória e irresponsável do ponto de vista de controle de queimadas, de controle de desmatamento ilegal, de exploração da biodiversidade amazônica, de garimpos ilegais, teremos problemas. Teremos cada vez mais problemas na economia do campo quanto pior for o tratamento da questão ambiental no Brasil. Perderemos qualidade da terra, correremos o risco de reduzir a rentabilidade, sem contar o impacto relacionado com a mudança do regime de chuvas. Enquanto não tivermos a correta correlação entre políticas agropecuárias e ambientais, iremos fatalmente caminhar para o pior dos mundos.

Recentemente, em artigo no jornal O Globo, o senhor destacou a importância do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para o combate à pandemia. Considera que o Brasil está desprezando o valor de pertencer a esse bloco?

Os Brics não estão se dando o devido valor. Eles têm dentadura, musculatura, e não acreditam nelas. E, particularmente, o Brasil não está cooperando em nada para que os Brics possam agir em conjunto, pois seu governo ataca esses parceiros. Rússia e China porque “são comunistas, Deus os livre”. No caso de Índia e África do Sul, não apoiou a proposta desses países junto à OMS de suspensão de patentes de remédios, vacinas e outras tecnologias relacionadas à pandemia. O Brics poderia ser o grande fiel da balança na distribuição equitativa da vacina, já que três de seus membros são os principais produtores de ingrediente farmacêutico ativo (IFA) e da própria vacina: Índia, Rússia e China. O Brasil, por sua vez, tem grande capacidade de produzir vacina por causa de dois institutos – públicos, diga-se de passagem – que são o Butantan e a Fiocruz. E a África do Sul tem grande experiência no manejo de saúde pública, é uma liderança na região.

Esse é um posicionamento necessário. Os países ricos fizeram compra excessiva de imunizantes, mais que o dobro do necessário para atender à sua população, absorvendo metade das vacinas disponíveis, obrigando as empresas sediadas em seu território a produzir primeiro America first, European Union first, rich first. Quando a gente sabe que, se mantivermos a infecção circulando em outras regiões, o mundo inteiro estará ameaçado, porque vão aparecer novas variantes do coronavírus como a brasileira, a sul-africana e a inglesa, sobre as quais ainda não se sabe a efetividade das vacinas. Então temos que brecar a replicação desse vírus que se dá pela contagiosidade, pela manutenção da epidemia circulando. Quanto mais o vírus se reproduz, mais chances de ele errar e virar uma variante pior. Vírus não pensa. Mas na hora de se replicar, faz um arranjo de aminoácidos nas proteínas dele que pode ser mais eficaz para entrar nas células, e você tem mais contagiosidade. É preciso redirecionar a vacina não em função da capacidade de aquisição, que foi o que os países ricos fizeram, mas àqueles lugares onde é mais importante conter a pandemia. Foi o caso de Manaus. A vacinação deveria ser priorizada ali, para reduzir a reprodução desse vírus que está variado, e que agora já se espalhou a outros estados.

O Brics tem que tomar consciência disso. Além de ter 41% da população mundial, podem atuar em conjunto no Conselho de Segurança, na Assembleia Geral das Nações Unidas, na OMS, no Banco Mundial, no FMI, no G20. Mas primeiro tem que tomar jeito. Tem que decidir que vai atuar como bloco, dada essa vantagem comparativa, associando-se em políticas corretas, e não negacionistas.

Não considera que o Brasil poderá ficar para trás, por ter menos a oferecer? Em recente conversa com a Conjuntura Econômica, o ex-embaixador Marcus Caramuru considerou que no momento os chineses estão priorizando alianças no continente asiático, e que o Brics não está em um bom momento, sendo em parte sustentado pelo Banco de Desenvolvimento do bloco (NDB) – para o qual o Brasil já atrasou pagamento, perdendo poder de voto.

O Brasil precisa retornar a uma política externa sadia. Mas isso cabe ao Executivo, e cabe ao Legislativo cobrar. O Legislativo tem duas comissões de relações internacionais, por que não estão mobilizadas? Quem deveria estar alertando para essas questões a que me referi não deveria ser um professor como eu. Veja, o Brasil assinou a declaração da 10ª Cúpula dos Brics em Johanesburgo, da qual constava a criação de um centro de pesquisa, desenvolvimento e inovação em vacinas. O que aconteceu? Nada. No ano seguinte o brasil presidiu o Brics, e não cobrou. Depois, a presidência do bloco passou a ser da Rússia, e agora é da Índia. Por que em 2019 não houve inteligência suficiente no Itamaraty para despertar para isso? Em 2020, a declaração da 12ª Cúpula tratou do mesmo tema, apontando que vacina tem que ser universal e equitativa. Essa declaração não saiu à revelia de ninguém, todos os membros assinaram. Mas falta ao Brasil fazer política internacional. Fazer cooperação verdadeira, ter a ética da solidariedade e da equidade presente nas políticas externas. Não é a política do eu primeiro. O “eu primeiro” só é bom caso melhore o todo. Porque se não agirmos nos lugares em que a epidemia está mais acentuada, o mundo só pode caminhar para uma situação cada vez pior.

O livro Diplomacia da Saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho, do qual é co-organizador, aponta que a pandemia chegou à América do Sul em um momento de enfraquecimento de seus processos de integração, além de fragilidade econômica. Considera que a crise sanitária pode abrir alguma porta para uma retomada da cooperação regional?

Tal como mencionei sobre os Brics, a região tem musculatura, e se tivesse atuado em conjunto, viveríamos uma outra realidade. Mas, do ponto de vista do multilateralismo, a região está esfacelada. Veja que ironia. Em 2019, estava em Buenos Aires em uma reunião que comemorava os 40 anos do Plano de Ação de Buenos Aires, de 1978, que estabeleceu a cooperação sul-sul como um bem público. Enquanto isso, o então presidente argentino Mauricio Macri pegava um avião para se encontrar com Bolsonaro, Iván Duque (presidente da Colômbia) e Sebastián Piñera (presidente do Chile) para dar um tiro de misericórdia na União das Nações Sul-Americanas (Unasul). A Unasul tinha apenas dez anos, e era o que de mais próximos tínhamos de uma Comunidade Europeia. Em seu lugar criou-se o Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul), que até agora não disse a que veio. No início do ano passado, o Brasil também saiu da instituição mais próxima do Unasul, a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que foi criada com a participação do Brasil. Sem Unasul, sem Celac forte, o que pode acontecer?

Veja, se tivéssemos, por exemplo, um sistema de vigilância de fronteiras conjunto, estaríamos agindo de mãos dadas. Poderíamos ter buscado negociar em conjunto os equipamentos que a América do Sul precisava. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), por exemplo, tem um fundo rotatório de vacinas criado há muitos anos pelo epidemiologista gaúcho Ciro de Quadros (1940-2014). Também lideramos a criação do Programa Amplia de Imunização (PAI), para ajudar todos os países a evoluir na vacinação contra paralisia infantil, rubéola, caxumba, sarampo, entre outras doenças, e estarmos preparados quanto tivéssemos uma ameaça desse tipo. Pois a ameaça chegou e nos pegou esfacelados. Não estou querendo responsabilizar só o governo brasileiro. Mas digo: teríamos outra realidade se estivéssemos trabalhando juntos na obtenção de vacina cooperativamente, desenvolvendo a indústria de saúde. O Brasil tem capacidade para isso, o México e a Argentina também. Tanto é que através de empresas privadas de biotecnologia, que recebem orientação governamental, estão produzindo IFA da vacina da AstraZeneca, e fabricarão vacinas para abastecer toda a América Latina. Se o Brasil estivesse no meio disso, estaríamos muito mais avançados. Temos capacidade científica para nos transformarmos em potência, enquanto conjunto de países, no campo médico-industrial. Mas hoje sofremos uma irresponsabilidade de política externa. Retroagimos ao ajudar a destruir a Unasul, ao sairmos da Celac. E o Legislativo brasileiro deveria despertar para sua importância na formulação de política externa, bem como da importância de uma diplomacia da saúde e da ciência e tecnologia, para defender o Brasil desta e de outras pandemias que certamente virão.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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