“Nosso maior inimigo contra a desigualdade será a desinformação”

Ricardo Paes de Barros – pesquisador do Insper

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como avalia o efeito da pandemia de Covid-19 na desigualdade de renda no Brasil?

Está claro que a pandemia vai tornar o país mais pobre, mas o efeito sobre a desigualdade não está claro. O auxílio emergencial de R$ 600 tem um impacto grande, que não é uniforme, sobre a pobreza e a desigualdade. Mas nosso problema não é agora, e sim na saída de crise, pelo fato da impossibilidade de manter o auxílio do ponto de vista fiscal, e muito menos uma renda mínima não tão bem-focalizada como essa, que teve de ser feita de maneira emergencial. Então, com a redução da intensidade da crise, a questão será saber para que tipo de rede de proteção iremos migrar. Levando em conta que esse processo será desigual, pois algumas pessoas vão recuperar sua renda e sua atividade econômica muito rapidamente, como em alguma medida estamos vendo. Por exemplo, na agricultura familiar a demanda não é tão afetada, e os agricultores podem se recuperar com certa facilidade. Já outras atividades ligadas a setores como viagens, turismo, serviços pessoais, vão se recuperar de forma lenta.

Como a retomada vai ser desigual no tempo e na profundidade, será preciso um programa que conheça essa diversidade. Então, nosso maior inimigo contra a desigualdade será a desinformação. O que precisamos, e isso não estamos desenvolvendo, é um grau bastante elevado de coordenação entre o Governo Federal, que terá os recursos e pode pegar emprestado com as gerações futuras; os estados, que em grande medida têm a capacidade técnica; e os municípios, que têm a capilaridade e o conhecimento das populações locais. Esse conhecimento de quem está ficando para trás, quem precisa mais, é o que tem que guiar nossa política de combate à pobreza, bem como de recuperação na saída da crise. Acho que o problema menor será o de recursos, pois vamos arranjar uma maneira de ter recursos. Mas isso vai requerer uma tremenda coordenação entre os governos federal, estaduais e municipais, bem como a sociedade civil, como associações comunitárias, pois se não colocarmos a inteligência e o conhecimento de todos sobre quem são os mais necessitados não conseguiremos sair da crise de maneira inteligente, com uma relativa baixa desigualdade. Se não tivermos essa articulação, sairemos com políticas relativamente cegas, ineficazes e desiguais.

Hoje os centros de referência de assistência social (Cras) são a referência na atenção à população que busca apoio assistencial. Será preciso modificá-los?

Acho que a pandemia mostrou pra gente várias coisas. Uma delas é que precisamos muito mais do Cras do que achávamos. Da mesma maneira que o agente comunitário de saúde têm de mapear e conhecer as pessoas com doenças crônicas do país, o Cras deveria servir para conhecer toda a população vulnerável e a diversidade das formas dessa vulnerabilidade. Mas a gente viu que, na hora da pandemia, o Cras estava menos conhecedor, e o Cadastro Único menos bem-informado sobre nossas famílias vulneráveis do que a gente gostaria. Agora, essa crise deu uma embaralhada em quem são os vulneráveis e a razão por que são, o que vai envolver uma espécie de recadastramento total de nossas famílias. Para isso, serão necessários recursos humanos e financiamento. E a sociedade civil pode ajudar muito nessa tarefa. Não vamos pensar que sejam só funcionários públicos os responsáveis por isso.

Hoje há um intenso debate sobre como reformular o sistema de assistência social, ampliando sua cobertura, sem comprometer ainda mais o quadro fiscal do país. Como avalia o caminho dessas discussões?

Esse debate tem um lado superpositivo, para que partamos para mudanças necessárias. Nossa legislação trabalhista precisa de reformas urgentes; o sistema tributário precisa de reforma urgente; o sistema de proteção social precisa de uma reforma urgente, com unificação de programas como Bolsa Família, abono, seguro-desemprego, salário família, seguro defeso e outros. Acho que todas essas mudanças são bem importantes, e espero que elas caminhem na direção de simplificar – seja a legislação trabalhista, seja a tributária –, para que as pessoas tenham incentivo para trabalhar, serem formais e visíveis, criando um ambiente de negócios melhor. E respeitando a restrição fiscal.

Acho que o Brasil tem uma demanda para caminhar nessa direção, e o fato de a crise precipitar essas mudanças absolutamente necessárias no Brasil, com tanta coisa negativa, é bom para que saiamos dela mais eficazes. Se gastássemos bem o quanto já gastamos para garantir os direitos sociais da nossa população vulnerável, a qualidade de vida dessas pessoas seria muito boa.

Mas o que volto a chamar a atenção é que essas reformas que podem ser feitas em Brasília são importantes. Mas, no final do dia, a saída da pobreza requer capilaridade. Essas mudanças gerais e simplificações são importantes. Mas ainda acho que a gente precisa da capilaridade e de muita informação sobre cada família pobre brasileira para fazer um plano individual de saída da pobreza, de maneira que consigamos, dentro de um cenário com melhor ambiente de negócios e incentivos, ajudar as famílias pobres a se encaixarem nessa nova ordem econômica e social que podemos gerar.

O senhor sempre ressaltou a importância da educação para a redução da desigualdade. No último ano e meio, tivemos um Ministério da Educação com desempenho criticado. Como avalia que isso tem afetado as políticas voltadas à melhoria da educação pública?

A educação brasileira é tão descentralizada que, desde que tenhamos recursos, ela consegue sobreviver a momentos em que o Ministério da Educação não esteja ajudando tanto. Mas um órgão central pode ser importante para orquestrar esse trabalho. Acho que, por exemplo, o governo federal poderia ter liderança mais forte no desenho do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, cuja manutenção para além de 2020 deve ser votada este mês). Uma das características do modelo atual é que não se pode levar recursos de um ano para outro. É como um fundo sem fundo. Tipicamente, um fundo educacional é algo para se poupar em anos bons para se ter mais dinheiro em anos ruins. Uma das ideias seria estabilizar isso. A outra coisa é tornar o fundo mais focado em dar incentivos para o bom uso do recurso. A maior desigualdade no Brasil não é de gasto por aluno, mas de qualidade do gasto entre redes e escolas que recebem o mesmo recurso por aluno. De novo: precisamos de um governo que respeite restrição orçamentária, promova a simplicidade, e se preocupe com incentivos. Dependendo de quanto for a obrigação que o governo federal tiver que contribuir (atualmente, é de 10% de contribuição mínima; a MP que estende o Fundeb prevê um aumento para 20%), acho que o Fundeb não está se tornando mais simples – pois continua sendo um grupo de 27 fundos – e muito menos está se tornando uma coisa que leva a sério os incentivos em seu desenho.

Nosso grande problema educacional é conseguir aprender com os próprios exemplos. Temos redes e escolas com desempenho fantástico, e outras com desempenho medíocre, e não conseguimos difundir os bons exemplos para as que precisam. Uma das missões do Fundeb seria promover essa difusão de melhores práticas, com incentivos adequados e assistência técnica. Sem esse apoio fortalecido, pode sair um Fundeb do milênio passado, ainda pouco moderno em termos de preocupação não só com distribuir recursos, como garantir equidade na qualidade destes.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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