“No Brasil, o estoque da dívida aumenta juntamente com o estoque de regras fiscais”

Leonardo Ribeiro – economista, analista do Senado Federal

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Qual sua avaliação sobre a PEC Emergencial aprovada?

A PEC Emergencial promulgada, hoje lida como EC 109, tem duas dimensões: uma emergencial e outra estrutural. Vejo problemas nas duas. No lado da emergência, a proposta é bipolar: por um lado, limita o poder de ação do governo ao estabelecer um teto para o auxílio emergencial; por outro lado, estabelece um procedimento de calamidade nacional que pode ser considerado uma anarquia fiscal, onde não há regras e limites para a execução do gasto. No lado estrutural, a EC 109 significa um arcabouço fiscal com regras mal desenhadas que estimulam judicialização e contabilidade criativa. A EC 109 simplesmente não ajuda nas questões emergenciais de combate à pandemia, assim como não lida com as raízes da crise fiscal. E ainda coloca o teto de gastos sobre gelo fino.

O debate em torno da EC 109 serviu para consumir tempo e energia, que na crise atual pode significar vidas. Na verdade, o Poder Executivo poderia ter pago o auxílio emergencial fora do teto via crédito extraordinário, sem necessidade de autorização constitucional, seguindo a lógica da Medida Provisória 1032 para a área da saúde. Claramente, foi uma estratégia para se avançar com a PEC emergencial que até o ano passado tramitava no Congresso.

Em comparação com o texto da PEC Emergencial que até o ano passado tramitava no Congresso, como a classifica?

Pode-se dizer que a EC 109 emergencial promulgada pelo Congresso Nacional mantém a espinha dorsal do texto que tramitou ano passado. Trata-se de um novo arcabouço fiscal baseado em regras fiscais com o objetivo de controlar o gasto público da União, dos estados e dos municípios.

No caso da União, medidas de ajuste fiscal previstas na regra do teto – conhecidas como gatilhos – são automaticamente acionadas quando um órgão ou Poder aprovar na Lei orçamentária um montante de despesas primárias obrigatórias que seja superior a 95% das despesas primárias totais. Fica prevista também a possibilidade de se criar por lei complementar uma regra específica para controle do endividamento público.

Para Estados e Municípios, medidas similares podem ser adotadas quando o total das despesas correntes forem superiores a 95% das receitas correntes. De acordo com o texto, cada poder ou órgão nos respectivos estados e municípios poderão aplicar ou não as ações de controle do gasto. O Tesouro Nacional não dará garantias para operações de crédito se o tribunal de contas local identificar que as medidas não estão sendo adotadas.

Houve algumas mudanças de rumo em relação ao texto original. Por exemplo, a regra de ouro deixou de ser usada como referência para a adoção de medidas de ajuste fiscal pelo executivo federal. Isto pode ser considerado um ponto positivo, tendo em vista os problemas que envolvem a regra de ouro no Brasil. O dispositivo constitucional sobre o tema é mal redigido e abre espaço para manipulações contábeis que comprometem seu objetivo: impedir o endividamento público como forma de financiamento do gasto corrente.

O Congresso também não aprovou o dispositivo que permitiria a redução da jornada de trabalho e dos salários dos funcionários públicos. Sobre esse assunto, eu diria que o Ministério da Economia se deixou levar por uma ideologia de confronto com servidores públicos e, por isso, não teve condições de dialogar sobre o tema. No aspecto racional, não ideológico, o instituto da redução de jornada no âmbito dos governos subnacionais pode ser considerado um instrumento de proteção para impedir demissões ou atrasos no pagamento de salários. Como estados e municípios não podem emitir títulos e moeda, a falta de recursos em caixa pode levar a situações extremas em que funcionários públicos deixam de receber salários. Nesses casos emergenciais, pode ser melhor reduzir temporariamente jornada e salários. A proposta e a narrativa do governo vieram desnecessariamente carregadas de ideologia.

Hoje, 14 estados já se enquadrariam nos limites definidos na EC 109 e poderiam aplicar os gatilhos previstos.  Considera que, nesse sentido, ela será benéfica para os entes subnacionais em seu processo de ajuste?

O dispositivo da nova regra fiscal dos Estados é o mais problemático. Veja o que diz a letra da lei: “Apurado que, no período de 12 (doze) meses, a relação entre despesas correntes e receitas correntes supera 95%...”. Brinco com meus colegas advogados do Direito Financeiro que eles já podem rascunhar as peças para futura judicialização. Para os contadores, o comando constitucional é um prato cheio de interpretações. Primeiro, como monitorar a aplicação dos 95%? Na lei orçamentária, na despesa empenhada, liquidada ou paga? Segundo, o que deve ser considerado para o cálculo da receita corrente e despesa corrente? A receita bruta ou líquida? A despesa bruta ou líquida do Fundeb? O Tesouro tem seu critério, mas o texto aprovado permite outras formas de apuração.

A regra ainda é problemática por outros motivos. Do ponto de vista fiscal, quem gasta menos vai gastar mais, especialmente em eleições. Além disso, qual o sentido de o Tesouro Nacional deixar de dar garantias para um investimento do poder executivo local financiado por operação de crédito quando uma assembleia legislativa não acionar os gatilhos fiscais? Do ponto de vista econômico, é um disparate. No lado federativo, um conflito. Na política, um motivo para o apagão das canetas. No jurídico, simples judicialização. Para os contadores, vale a criatividade para se chegar em patamares inferiores a 95%.

Aqui temos um problema que venho estudando. Nossa crise fiscal tem uma dimensão federativa complexa. Primeiro, uma disparidade regional alucinante, com indicadores socioeconômicos catastróficos no Norte e Nordeste em relação ao Sul e Sudeste. Isso já explica a necessidade de uma avaliação fiscal caso a caso, envolvendo inclusive acertos no sistema de equalização fiscal horizontal – como distribuir os fundos de participação (FPM e FPE).

Para além dessa questão regional, nota-se que o governo central se consolida como redistribuidor de recursos (previdência social, assistência social, juros e subsídios) e menos como provedor direto de serviços públicos. Mas são os governos subnacionais que assumem predominantemente o papel de executores (salários, compras governamentais e investimentos públicos) dos serviços públicos. Ou seja, não são regras fiscais mal elaboradas que resolverão os problemas. Precisamos de uma gestão federativa moderna, com pessoas que entendem do tema à frente. O diagnóstico deve ser bem feito. Costumo dizer que precisamos de cirurgiões neurovasculares para resolver o fiscal, e não de clínicos gerais receitando remédios gerais (regras fiscais). Nessa discussão federativa, estou mais com Oliver Blanchard: menos regras, mais padrões de governança.

Em recente webinar, o pesquisador associado do FGV IBRE Manoel Pires avaliou que as regras da EC 109 deverão trazer uma nova ancoragem fiscal, com foco no limite da dívida, reduzindo o papel das demais regras. Essa também é sua avaliação, quando afirma que a EC 109 coloca o teto de gastos sobre gelo fino?          

A EC 109 cria uma nova regra fiscal para a União que enfraquece o teto de gastos ao deixar um vácuo jurídico nas situações em que o limite de despesa criado em 2016 é descumprido. Na verdade, a constituição deixa de apresentar o comando para orientar a administração pública nas situações em o que o gestor gasta mais do que o permitido. Isto quer dizer que o teto perdeu um atributo importante que deve existir em toda regra fiscal: a válvula de escape. Em outras palavras, furar o teto passou a ser crime contra a Constituição, significando criminalização da política fiscal e maior constrangimento para os operadores do orçamento. 

Até então, o teto apresentava dois dispositivos fundamentais no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): o art. 107, que cria os limites de gastos por órgão e Poder da República, e o art. 109, que regulamentava os gatilhos fiscais, no caso de descumprimento dos limites. O primeiro continua existindo – é o próprio teto. O segundo morreu dando lugar a regra dos 95% (despesas primárias obrigatórias / despesas primárias totais). Criou-se uma regra dentro de outra regra. Cabe lembrar que esses dois conceitos de despesas – primário e obrigatório – não estão bem definidos, o que possibilita maquiagem contábil no orçamento para justificar aumento de gastos. Qual será o incentivo? Elevar a despesa discricionária até onde o teto de gastos permitir. Daí em diante a gestão ficará sobre gelo fino, entre o crime constitucional e a inação do poder público. Vejo o seguinte: trocamos de regra para jogar algum ajuste para frente sem responder à seguinte pergunta: como o teto será cumprido até 2026?      

O senhor tem apontado que, pese a quantidade de regras fiscais do Brasil, há muita incoerência entre elas, tornando o sistema ineficiente. A EC 109, então, não deve colaborar para reduzir esse problema?

 O sistema é ineficiente. O estoque da dívida aumenta juntamente com o estoque de regras fiscais. São as leis da inércia. A OCDE examinou as regras que vigoram em 15 federações. Nosso modelo é parecido com o alemão: forte descentralização de recursos com pesado poder regulatório do governo central. Mas no Brasil a incoerência do modelo é alarmante. Temos um arcabouço cheio de regras, mas a responsabilidade fiscal é baixa. Além disso, a co-determinação da política fiscal via Congresso e Supremo Tribunal Federal é marcante. Quem acompanha o tema sabe como é forte a influência desses dois poderes na gestão fiscal dos estados brasileiros. Isso ocorre porque a União não coordena bem, sendo até mais irresponsável do que muitos governos subnacionais, que não podem se endividar, nem emitir dinheiro.

A EC 109 piora esse cenário. Novas regras com problemas e incentivos distorcidos foram criados dentro de um contexto de desordem federativa. E aqui tomo emprestado uma parte das lições de Teresa Ter-Minassian e Blanchard para provocar o seguinte debate: regras fiscais por si só podem promover disciplina fiscal? Diria que não.

Precisamos apostar mais em governança, transparência e padrões de gestão para premiar bons gestores. No Brasil, estamos viciados em regras fiscais que não lidam de frente com os problemas. Precisamos parar de criar novas regras para colocar a mão na massa.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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