Neoindustrialização e o governo: um anúncio, diferentes leituras

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na semana passada, o governo fez uma série de anúncios que vão ao encontro da promessa de fortalecer a indústria brasileira que, nas palavras do ministro de Desenvolvimento, Indústria, Comércio Exterior e Serviços, vice-presidente Geraldo Alckmin em sua posse, em janeiro, deve ser “moderna, que parta do diagnóstico correto, seja bem desenhada, concebida e implementada, e tenha métricas e mecanismos adequados para medir resultados”.

Na edição de fevereiro da Conjuntura Econômica, cuja matéria de capa tratou de formas de impulsionar a indústria brasileira (revise a matéria na íntegra), José Augusto Fernandes, pesquisador do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes), tinha avaliado as sinalizações iniciais do governo como um discurso em construção, que ainda deveria gerar tensão na hora de definir de fato as agendas. Consultado novamente pelo Blog, Fernandes reiterou essa impressão. A começar pelo artigo assinado pelo presidente Lula e Alckmin no jornal O Estado de S. Paulo (link aqui – pode estar restrito a assinantes) que, na classificação de Fernandes, é um primeiro esboço de ideias que ainda precisa ser acompanhado no detalhamento. “O artigo permite diferentes leituras. Há o mérito de chamar atenção para as oportunidades da economia verde e da importância de políticas horizontais de redução do Custo Brasil, com destaque ao papel da reforma tributária, formação de capital humano e previsibilidade macroeconômica”, diz. “Mas como o próprio texto indica, a questão central é o como, quando se refere à política industrial. No detalhamento, é preciso explorar o que se entende por ‘política industrial para o novo momento da globalização’ e que lições foram aprendidas sobre experiências recentes, em especial sobre os custos da proteção excessiva.”

Para Fernandes, faltou ao artigo de Lula e Alckmin uma questão central para o sucesso de qualquer política, que é como esta irá aumentar a produtividade da economia. “Esse quesito não é mencionado no artigo, e a referência ao resgate da política comercial é vago sobre a direção desejada”, diz, salientando que o anúncio da política para o setor automotivo – feito de forma improvisada – e a natureza dos instrumentos apresentados acentuam os receios sobre a direção da política e sobre a existência de aprendizado.  “A agenda de aumento da produtividade da inovação ainda estará à espera do desenho e anúncio de políticas que conduzam a estes objetivos”, afirma.

Em entrevista ao Estadão no domingo (link aqui),  Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, avaliou que as medidas de incentivo ao barateamento do carro popular seriam mais virtuosas se abandonassem o foco no conteúdo nacional e focalizassem metas de exportação – que, para serem atingidas, garantindo um produto competitivo, não restringiriam  a importação de peças. Por que repetir princípios de políticas anteriores que implicaram subsídios significativos, mas não resultaram em aumento da participação dessa indústria no PIB? – questiona. Tal medida, continua, tampouco beneficia a camada mais pobre da população de fato, para a qual um automóvel de R$ 60 mil tampouco é um bem de fácil acesso.  “Em geral, representantes do setor industrial concordam que políticas de incentivo devem ser horizontais, com exceções para indústrias nascentes, que precisam de medidas verticais. Mas o setor automobilístico claramente não faz parte desse grupo”, reforça Maurício Canêdo Pinheiro, professor da Uerj, ex-pesquisador do FGV IBRE.

Tal como Fernandes, que avalia não estar claro o que se pretende com a defesa de uma política industrial, Canêdo também ressalta a dúvida semântica quanto à inovação da qual tratam as medidas de estímulo anunciadas. “Vimos o anúncio do BNDES da disposição de R$ 20 bilhões para essa área (a partir de aprovação, pelo Senado, para o banco financiar projetos de P&D a Taxa Referencial (TR), com custo de 1,7% ao ano e dois de carência), e de fato inovação é um dos poucos temas em torno dos quais há consenso entre especialistas. Mas ainda é preciso entender o que se entende por inovação: se é para apoiar atividades de fato ligadas a pesquisa e desenvolvimento ou setores pretensamente mais intensivos e inovação, sem metas a cumprir”, diz. “É bom ver que esse tema está no radar do governo, mais ainda é preciso saber se é apenas um nome vistoso para repetir algo que já se faz há 60 anos, sem aprender com os erros cometidos”, afirma Canêdo, reforçando os questionamentos em torno da política do carro popular.

Na entrevista a O Estado de S. Paulo, Pessôa reiterou o diagnóstico feito à Conjuntura Econômica, sobre as questões estruturais que fazem parte dos problemas vividos pela indústria no Brasil. Entre eles, uma baixa taxa de poupança, o que torna o custo de capital mais alto, com juros maiores, o que prejudica a indústria de transformação, que é capital-intensiva. “Além do fato de a indústria de transformação ser mais gravada do que os outros setores, com uma alíquota média de impostos sobre produção maior do que em serviços e no agronegócio, a complexidade do sistema faz com que o custo de processamento seja elevado, pois enseja muito litígio”, afirmou à época, ressaltando outra unanimidade entre os analistas de indústria, de que sem reforma tributária não haverá política de desenvolvimento produtivo que dê conta de ampliar a competitividade do setor.  A anomalia do atual modelo de tributação sobre o consumo, aponta Fernandes, representa um ônus para a competitividade dos produtos brasileiros no exterior. Isso estimula a que cada segmento busque suas soluções particulares, visando a uma redução de custo. “Isso faz com que a atenção do gestor de política industrial seja dar vazão aos lobbies que ele recebe, dos setores que estão com decisões de investimento, pois a anomalia do sistema tributário também é uma força para a proteção comercial”, lembrou Fernandes na Conjuntura, lembrando que a cumulatividade de carga tributária ao longo do processo produtivo é um ônus que os concorrentes estrangeiros não têm. “Precisamos mudar esse eixo, da proteção para a inovação e a produtividade, que também estão associadas à normalização da política tributária.” Fernandes afirma que esse primeiro passo deve ser seguido por outras medidas importantes no campo de políticas horizontais, que beneficiam todo o setor produtivo. “A captura de oportunidades da economia verde e da reorganização das cadeias de valor depende, dentre outras, de uma política energética que garanta energia renovável abundante e a preços competitivos e de uma política comercial que reduza os custos dos investimentos para a transição energética e transformação digital e facilite a integração às cadeias de valor. Estes são temas que precisam ser enfrentados”, conclui.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir