Medidas de estímulo ao crédito do governo convergem com recomendações para fortalecimento estrutural do sistema

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na semana passada, o governo anunciou um pacote de 13 medidas com as quais pretende estimular o crédito no Brasil, além de outras três voltadas a impulsionar parcerias público-privadas (PPPs) em estados e municípios. Em linhas gerais, elas atendem a uma das recomendações feitas por especialistas na matéria de capa da Conjuntura Econômica de abril, de se perseverar na ampliação do mercado de crédito de forma estrutural, visando o longo prazo (veja a íntegra da matéria Propulsor do PIB).

Do grupo de medidas, três já têm projeto de lei tramitando no Congresso. Uma delas, citada por Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE, como essencial para a continuidade da agenda de redução do custo do crédito, é a que trata do novo marco legal de garantias. O marco prevê, por exemplo, um imóvel que ainda não foi totalmente quitado pelo comprador pode ser usado como garantia, no limite do que já foi pago por ele. Ou, ainda, que um mesmo imóvel pode ser usado para lastrear mais de uma operação de crédito, desde que a soma dos valores garantidos não ultrapassem o valor do imóvel. Marcos Saboia Pinto, secretário de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, afirmou que a ideia é negociar no Congresso a exclusão do texto de itens polêmicos, para facilitar sua tramitação. Um deles é o uso de bens de família como garantia. “Havia uma discussão de interação desse uso com outros mecanismos de financiamento. Queremos tirar essa parte do projeto, que consideramos desnecessária e até perigosa para as famílias”, disse. “Queremos eliminar pontos controversos e focar no essencial, que é o aprimoramento das instituições de garantia. Permitindo que estas sejam mais sólidas, baixa-se o risco de crédito dos bancos e o custo dos empréstimos para tomadores”, afirmou.

Nessa mesma linha, a Fazenda defende a criação de uma nova possibilidade de garantia em operações de crédito, usando os recursos aplicados em fundos de previdência complementar aberta e em títulos de capitalização. De acordo ao Ministério, atualmente há, respectivamente, R$ 1,2 trilhão e R$ 20 bilhões aplicados nesses produtos. “Elaboramos um projeto de lei com estrutura jurídica para permitir que bancos possam financiar detentores dessas cotas e pegá-las como garantia, abrindo a possibilidade a uma grande quantidade de financiamento a custo baixo”, afirmou Saboia. Ele indicou que, com essa medida, evita-se o resgate antecipado desses recursos para cobrir necessidade de liquidez a custos potencialmente elevados, incentivando a formação de poupança previdenciária.

Há também medidas voltadas à eliminação de barreiras e ineficiências do sistema. Entre elas, a de simplificação do processo de emissão de debêntures, principal título de renda fixa para emissão de dívida privada pelas empresas brasileiras. “A lei que rege esse processo é de 1976, e prevê procedimentos burocráticos como o de exigir que a emissão seja aprovada em assembleia geral, o que pode ser um processo custoso e demorado. Ao simplificá-lo, esperamos acelerar o processo e facilitar com que esse mecanismo seja usado por empresas de menor porte”, disse Saboia. O governo também prevê facilitar o acesso a dados fiscais da Receita Federal, desde que com o consentimento do titular. “Já contamos com o cadastro positivo, mas ele ainda não conta com o nível de informações ideal, e dentro do governo há uma série de dados de pessoas físicas e jurídicas. A ideia é fixar uma parceria dos bancos com a Receita Federal para, mediante autorização do contribuinte, agilizar a checagem de dados financeiros”, descreve, ressaltando que tal medida também poderá beneficiar especialmente as pequenas e médias empresas, que mais sofrem com a assimetria de informações que encarece o crédito.

Na matéria da Conjuntura Econômica, Braulio Borges ressaltou a necessidade de não só se avançar nessa agenda de fortalecimento do mercado de crédito como dar atenção às medidas já aprovadas que ainda não estão consolidadas, como a duplicata eletrônica. “Ela foi aprovada em 2018 e ainda não está funcionando porque demanda uma série de etapas intermediárias, incluindo aprovação do convênio das empresas que vão reconhecer o valor do título digital”, disse.

Na coletiva de imprensa, o secretário sinalizou a disposição do Ministério em trabalhar em conjunto com o Banco Central nessa agenda de crédito, citando duas frentes de trabalho conjunto. A primeira reúne medidas de racionalização de processos para a autorização de bancos, com a qual pretende estimular a concorrência bancária a nível regional, e as atividades relacionadas à infraestrutura legal para a criação do real digital. Como mostra matéria da Conjuntura Econômica de novembro de 2022 (leia aqui), a tokenização de ativos permite abrir alternativas de investimento que antes demandavam um aporte grande de dinheiro a mais pessoas, a partir da fragmentação dos mesmos, e a entrada do real digital pode colaborar nessa ampliação de oferta.

Para Saboia, é importante que as oportunidades de oferta crédito sejam observadas além das possibilidades do setor bancário.  “Não é só sistema bancário que canaliza poupança popular para investimentos”, disse, defendendo também o foco no mercado de capitais e no setor de seguros. O primeiro, indicou Saboia, já vem registrando um considerável crescimento: de 2013 a 2022, enquanto os empréstimos bancários cresceram 100%, a dívida privada expandiu quase 200%, indicou. “Isso faz parte de um trabalho de mais de duas décadas, com medidas de proteção ao investidor, transparência, redução de assimetria de informações, que agora temos que estender ao setor de seguros, que não cresceu na mesma medida”, afirmou. “Enquanto a densidade per capita de seguros nos Estados Unidos é de US$ 8 mil, no Brasil é de US$ 290. Ficamos atrás também de Chile (US$ 545 per capita) e Uruguai (US$ 459)”, ilustrou. “Temos muito a evoluir, e só conseguiremos avançar se fizermos a mesma transição no mercado de capitais, no caminho da transparência, proteção do consumidor, visando à solidez das instituições que participam do mercado e a competição, aumentando a quantidade de agentes e a capilaridade”, concluiu.

Ainda sem a definição sobre o programa Desenrola, para renegociação de dívidas de famílias de baixa renda, para esse grupo o governo sinalizou no evento a elevação do chamado mínimo existencial - valor protegido dos bancos ao se renegociar dívidas de consumo por ser considerado necessário para a sobrevivência - de R$ 303 para R$ 600, equiparando-o ao Bolsa Família. Hoje, no país, estima-se o número de endividados em 70 milhões, dos quais 9 milhões estão na categoria de superendividados, somando um saldo de R$ 235 bilhões. Ao se alterar o mínimo existencial, esse saldo também deve subir, para em torno de R$ 266 bilhões.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Subir