Inadimplência e demanda por crédito voltam a crescer entre famílias de baixa renda

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Os efeitos da conjunção de agravamento da pandemia e alto desemprego já começam a deixar seu rastro no mercado de crédito. O registro de alta na busca por empréstimos, concomitante ao aumento da inadimplência, indica que parte crescente dessa demanda é gerada por pessoas em busca de recursos para pagar despesas e honrar compromissos já realizados. Essa tendência se concentra especialmente nas famílias de baixa renda, mais atingidas pela pandemia, que ainda têm de enfrentar uma conjuntura negativa de aumento do custo desse crédito, observado nas principais alternativas para pessoas físicas.

Viviane Seda Bitencourt, coordenadora das Sondagens do FGV IBRE, sinaliza esse quadro a partir do resultado de quesitos especiais incluídos nas últimas pesquisas realizadas por sua equipe. Um desses quesitos buscou medir o estresse financeiro dos consumidores, que é a soma do percentual dos respondentes que afirmam usar parte de sua poupança para quitar despesas correntes à fração dos que dizem já estar endividados. Esse indicador registrou piora em março, comparado a fevereiro, em todas as faixas de renda. Mas, enquanto para as famílias com renda mensal mais alta o maior fator de estresse foi reduzir suas reservas para quitar despesas, para a camada mais pobre o endividamento foi o fator mais citado. “No caso das famílias de mais baixa renda, o percentual dos que se dizem endividados é maior do que no ano passado. Em realidade, é o nível mais alto desde junho de 2016, durante a recessão”, diz.

Indicador do FGV IBRE aponta tendência de endividamento entre famílias de baixa renda


Fonte: FGV IBRE.

Outro quesito incluído nas sondagens reforçou essa fotografia. Nele, 79% dos respondentes com renda familiar mensal de até R$ 2,1 mil afirmaram que ao menos um membro da casa se endividou ou aumentou o atraso nas dívidas em função da pandemia. Na faixa de renda entre R$ 2,1 mil até R$ 4,8 mil, o percentual foi de 61%. “Nessas faixas, respectivamente, 37,6% e 45,9% afirmam que os atrasos de pagamento já duram de 1 a três meses, o que coincide com a piora do cenário no primeiro trimestre deste ano”, aponta Viviane. “Apesar desse período coincidir com o fim do auxílio emergencial, a ausência desse benefício aparece com peso menor. A perda do emprego é o motivo mais citado, seguido pela redução de salário”, completa. A pesquisadora lembra que, enquanto não houver uma retomada consistente das atividades do setor de serviços prejudicadas pelas medidas de isolamento, que em geral são grandes empregadoras, será difícil uma reversão desse quadro. “Para pessoas que trabalham na linha de frente de bares, restaurantes, entre outros prestadores de serviço, não há alternativa de trabalho remoto. O impedimento da atividade presencial se reflete em redução de renda e, conforme o caso, em inadimplência’, afirma.

Viviane lembra que esses indícios ainda não se refletiram na inadimplência medida pelo Banco Central, cujos dados disponíveis vão até janeiro, quando estava em 4,1%. “Esse percentual ainda refletia o movimento de queda observado desde maio de 2020, quando o nível de inadimplência atingiu um pico de 5,6% e então passou a cair. Mas a tendência agora é de que esse movimento se reverta”, diz.

Consumidor


Fonte: FGV IBRE.

Luiz Rabi, economista da Serasa Experian, conta que essa mudança de direção também é sentida nos levantamentos da empresa. “Fechamos o ano passado com 61,4 milhões de brasileiros inadimplentes, bem abaixo do pico de 65,9 milhões registrado em abril, no início da pandemia. Mas em janeiro e fevereiro de 2021 esse número já tinha crescido 200 milhões, para 61,6 milhões”, descreve, apontando viés de alta. “As variáveis que fizeram a inadimplência cair no ano passado, este ano se invertem: aumento de juros, inflação maior, auxílio emergencial interrompido e retomado em montante bem menor, spreads bancários aumentando. E sem contrapartida na geração de renda, já que as medidas de isolamento voltaram a prejudicar a atividade”, enumera. “Anda é cedo para dizer se a inadimplência voltará para perto dos 66 milhões de brasileiros, maior nível desde que esse indicador começou a ser divulgado, em 2016. Talvez não. Mas a tendência é de alta gradual”, afirma.

Rabi também aponta o aumento registrado na demanda por crédito, de 20,1% em março, comparado ao mesmo período de 2020. E com maior incidência na faixa mais baixa de renda pessoal mensal, de R$ 500, onde essa alta foi de 26,9%. O economista ressalta que, mesmo considerando que em março do ano passado os efeitos do início da pandemia levaram a uma queda de 8,4% nessa demanda, ainda assim a expansão verificada este ano se mantém na casa dos dois dígitos. “Se olharmos só para o primeiro bimestre, excluindo o efeito pandemia, essa evolução mantém a mesma tendência”, acrescenta. As estatísticas da Serasa têm como base consultas por crédito pedido por pessoas físicas a bancos, financeiras, operadoras de cartão de crédito, sem identificar a modalidade ou finalidade da operação. “De qualquer forma, levando em conta que os dados de consumo não têm evoluído com a mesma força, e que em geral pessoas se endividam ou para comprar algo, ou para pagar dívida, é muito provável que esse aumento também esteja relacionado ao esforço das pessoas por negociar suas dívidas e evitar a inadimplência”, afirma.

Evolução da demanda do consumidor por crédito
variação anual, mês vs mesmo mês do ano anterior


Fonte: Indicador Serasa Experian.

O agravante desse quadro é que, este ano, o aumento da demanda por crédito vem acompanhada de aumento de seu custo para o tomador. “Desde novembro de 2020 temos observado elevações pequenas, mas constantes, nas taxas de juros de todas as modalidades de crédito para pessoa física”, afirma Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor executivo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). A taxa média mensal de juros, que em março de 2020 era de 5,79%, foi para 5,51% em novembro, e em março deste ano registrou 5,74%. “Era um movimento previsível. De fato, as condições vêm piorando principalmente por conta do risco, com o agravamento da pandemia e da situação de emprego e renda das famílias, que passam a buscar crédito para complementar seu orçamento”, diz, lembrando que, diante desse quadro, os bancos passam a ser cada mais seletivos. “E, na medida em que portas se fecham, não resta alternativa às pessoas sem garantias para oferecer do que buscar linhas mais caras, como as de financeiras, ou mesmo do cartão de crédito”, diz.

Oliveira também destaca que parte do aumento de inadimplência pode refletir um potencial represado no ano passado. Ele indica o retrocesso do nível de inadimplência observado em 2020 também se deveu à abertura dada pelos bancos, frente à gravidade da pandemia, de negociar e estender prazos de muitas operações, postergando o problema. “Houve um ambiente em que os bancos pausaram empréstimos. Mas esse processo acabou em dezembro e, este ano, com a retomada desses compromissos, muitas pessoas ainda permanecem com dificuldades de pagamento”, alerta o economista. Assim, a soma de uma possível herança de 2020 a fatores como manutenção de alto nível de desemprego, inflação corroendo renda, aumento da Selic com sinalização de novas altas, apontam à manutenção da elevação desse custo nos próximos meses. “No caso dos bancos, existe a possibilidade de que, frente ao agravamento da pandemia, estes façam uma nova rodada de postergação de pagamento, pausa de contratos, por conta da dificuldade financeira dos clientes. Caso contrário, não terão saída. Ou fazem algo para reduzir a inadimplência, ou terão que contabilizá-la e fazer provisões desses valores”, diz.  “Mas esta deverá ser a única frente de apoio, pois não vejo como pensar em crédito barato no curto prazo”, conclui.

Evolução das taxas mensais de juros para linhas de crédito pessoa física (%)


Fonte: Anefac.

 


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