Impactos da pandemia: construção menos confiante com demanda, e famílias de baixa renda mais vulneráveis à precarização da moradia

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O ímpeto de muitos brasileiros em investir em imóveis – seja como moradia, seja em busca de um investimento mais seguro em meio às incertezas provocadas pelo choque sanitário –, foi um alento para a construção no ano passado (como apontaram especialistas em webinar do FGV IBRE e Folha de S. Paulo), mas não suficientemente forte para manter o otimismo do setor em 2021. Dados da Sondagem da Construção do FGV IBRE apontam que o pico da confiança dos empresários do setor em 2020 aconteceu em outubro, registrando 95,2 pontos (dessazonalizados), acima do nível registrado em fevereiro desse ano, antes da pandemia no Brasil. Manteve-se alto até dezembro, mas na virada de 2021 passou a perder fôlego. Em abril, chegou a 85 pontos.

“Até março, essa mudança estava mais relacionada a uma deterioração das expectativas sobre o futuro. Já o resultado de abril aponta uma clara contaminação da percepção dos negócios correntes, com maior número de empresas assinalando queda na atividade”, diz Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos da Construção do FGV IBRE. Outra diferença apontada pela pesquisadora é que, se antes a preocupação dos empresários do setor estava concentrada na elevação dos custos de matéria-prima, em abril o quesito demanda insuficiente foi o destaque. “No período mais forte da crise, as assinalações apontando demanda insuficiente chegaram a 60%. Em abril, as menções a esse quesito voltaram a esse nível, saindo de 38% para 57%”, diz. Castelo atribui esse salto ao impacto do agravamento da pandemia, que obrigou, em vários estados, ao fechamento de estandes de venda, levando a essa percepção mais negativa. “De fato, a necessidade desse fechamento complicou o quadro em um cenário que já estava difícil, em função da elevação muito forte da matéria-prima. Isso tem alertado empresários. Há uma preocupação com contratos vigentes e a precificação futura, dada à incerteza do momento em função da evolução dos preços”, diz.

Setor da construção mais pessimista
Índice de Confiança da Construção, dessazonalizado


Fonte: FGV IBRE.

Ana Castelo ressalta que a pesquisa ainda não capturou a reação do setor aos cortes orçamentários na pasta do Desenvolvimento Regional, que praticamente zerou a verba destinada à continuidade de obras da faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, agora Casa Verde e Amarela, implicando um viés de baixa para o resultado da próxima Sondagem. Houve corte de R$ 1,5 bilhão nos recursos do fundo que abarca o programa, restando R$ 27 milhões, o que deverá resultar em paralisação de cerca de 200 mil unidades habitacionais. Ela lembra que desde o lançamento do Casa Verde Amarela, em agosto do ano passado, o futuro dessa faixa de projetos habitacionais, voltados às famílias de mais baixa renda, cujo valor é subsidiado pelo governo federal em até 90%, financiados com recursos do orçamento, estava em xeque. “A princípio, pensou-se que ela havia sido eliminada, já que não havia previsão de recursos para novas obras. A resposta do governo foi de que, inicialmente, seria privilegiada a retomada de obras paradas, para depois fazer novas contratações. Agora estamos sem essas contratações, e na iminência de ver nova paralisação das obras em andamento”, diz.

Essa descontinuidade acontece em um momento no qual a intensificação do impacto econômico da pandemia mostra sinais de afetar a qualidade da moradia de famílias mais vulneráveis – para as quais o programa habitacional é uma frente de apoio. “Hoje se registra uma deterioração grande do quadro social, já reportada na mídia. Com o empobrecimento das classes C e D, surgem exemplos de famílias que viviam de aluguel, não necessariamente numa situação confortável, que perdem a capacidade de arcar com esse custo e passam a buscar alternativas, como entrar em invasões”, cita.

Frederico Poley, coordenador do cálculo do déficit habitacional na Diretoria de Estatísticas e Informação da Fundação João Pinheiro (FJP), corrobora o diagnóstico de Ana Castelo, de tendência de agravamento do déficit habitacional. Ele explica que, para se calcular esse déficit, a métrica oficial leva em conta diversos fatores que não apenas a falta de moradia. “Não significa falta de habitações, haja visto o grande número de habitações desocupadas nas nossas cidades e também a redução do número de pessoas por domicílio no país”, reforça. De acordo à metodologia da FJP, o déficit pode se dar pela precariedade da moradia (improvisadas ou rústicas); por coabitação (unidades domésticas e domicílios formados por cômodos) e domicílios com elevados custos com aluguel, chamado ônus excessivo com aluguel urbano. E pode evoluir de formas diferentes, de acordo à conjuntura. De 2016 para cá, por exemplo, a FJP identificou aumento do déficit provocado pelo ônus excessivo com aluguel urbano, que se refere à parcela de famílias com renda de até 3 salários mínimos cujos gastos com aluguel superam 30% de sua renda. Esse grupo aumentou de 2,8 milhões de domicílios em 2016 para 3 milhões de domicílios em 2019. Eleonora Cruz Santos, diretora de Estatísticas e Informações da FJP, indica que esse déficit se mostra mais concentrado, em termos relativos, nas regiões Norte e Nordeste do país, e seu peso recai mais sobre as mulheres. “Aproximadamente 42% dos domicílios com déficit são chefiados por mulheres sem cônjuge, podendo ou não ter filhos. Quando analisamos o ônus excessivo com aluguel, que na verdade é o maior componente do déficit habitacional, a participação da mulher torna-se ainda mais marcante: aumentou sua representatividade de 56% para 64% do total”, afirma. "Ou seja, o déficit habitacional não está dissociado do retrato das disparidades socioeconômicas do país, e dos desafios exigidos pelas políticas públicas em geral."

Défict habitacional brasileiro em 2019


Fonte:  Fundação João Pinheiro.

Poley indica que uma das prováveis dinâmicas que poderão ser vistas a partir deste ano é a de pessoas e famílias que não conseguem pagar o aluguel dos domicílios em que residem e por isso têm que se deslocar para habitações mais precárias ou retornarem para a casa dos pais ou mesmo irem morar em casa de parentes e conhecidos. “Entre os segmentos mais vulneráveis estariam exatamente os domicílios com pessoas de referência mulheres com crianças pequenas, domicílios com densidades elevadas e sem acesso a serviços básicos – algo que também tende a variar conforme a região”, diz. Para Ana Castelo, mitigar esses possíveis impactos da pandemia no curto prazo depende prioritariamente de políticas de renda, mais do que habitacionais. “Hoje, o primordial é que essas pessoas estão perdendo capacidade de se sustentar em qualquer habitação. Nesse cenário, a precarização tende a crescer, com famílias migrando para domicílios improvisados, com condições materiais muito ruins”, reforça. 

No médio e longo prazos, a pesquisadora aponta, além da necessidade de definição dos rumos do Casa Verde Amarela, pensar em outros programas que incluam iniciativas como melhoria das habitações – o Casa Verde Amarela acena nessa linha prevendo linhas de crédito para reformas – e projetos de urbanização de favelas. Poley também enumera alguns direcionamentos possíveis visando à melhoria das condições de moradia das famílias de baixa renda. “Um deles seria a maior oferta de terras ‘urbanizadas’, com serviços de saneamento, acesso a serviços de transporte e comunicação, entre outros”, diz. Ele aponta que esse aumento da oferta não necessariamente se dá com a “abertura” de novas áreas, mas nas já existentes e carentes. “Isso por si só já teria um impacto importante nos indicadores de domicílios precários e na inadequação habitacional – aqui a dinâmica demográfica brasileira também pode auxiliar, na medida em que as taxas de crescimento populacional no país estão exercendo cada vez menos pressão na demanda por novas habitações.” Outro ponto mencionado por Poley é uma maior intercessão entre as políticas de assistência social e as políticas habitacionais. “Isso se daria aperfeiçoando e focalizando as ações dos programas habitacionais para os seguimentos mais vulneráveis da população, utilizando, por exemplo, instrumentos como o aluguel social”, afirma.

Ana comenta que a estruturação de uma política de aluguel social de forma sistêmica é desafiadora, mas que não faltam debates em torno do tema. “A própria FJP participa de discussões junto ao governo, de encontrar as melhores ferramentas para operar um programa dessa natureza”, diz. Não há muitas experiências nas quais se apoiar para essa análise. No Brasil, ela lembra do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), no governo Fernando Henrique Cardoso, que previa o pagamento, de uma taxa mensal por 15 anos, quando a família ganhava o direito de optar pela compra do imóvel, financiando o saldo devedor. “Ele não se manteve dada a dificuldade de construir um modelo sustentável – o que, a meu ver, passa entre outros pela possibilidade de gestão pelo setor privado”, afirma. Um dos principais desafios, aponta Ana, é como equacionar a informalidade e a oscilação de renda comum nessa parcela da população. “Hoje as propostas acabam focando nos menos vulneráveis, o que ainda deixa a camada de famílias mais pobres descoberta. Para estas, não vejo outra alternativa que a ação do poder público”, afirma, o que hoje significa garantir cobertura ao que era a faixa 1 do Minha Casa Minha Vida.

SAIBA MAIS:

Comentários de Frederico Poley, coordenador do cálculo do déficit habitacional na Diretoria de Estatísticas e Informação da Fundação João Pinheiro (FJP), sobre como se mede o déficit habitacional no Brasil

Sobre a metodologia

A metodologia do déficit habitacional que é aplicada desde 2016 está subdividida entre déficit quantitativo e déficit qualitativo (ou inadequação de domicílios) e passou a ter como fonte principal de dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua – PnadC, produzida pela pelo IBGE. A quebra estrutural da Pnad, com a substituição pela PnadC, inviabilizou a comparabilidade da série atual do déficit habitacional com a produzida pela FJP até 2015. Em grande medida, a implementação definitiva da PnadC propiciou uma "janela de oportunidade" para que a metodologia do déficit habitacional, desenvolvida pela Fundação João Pinheiro, fosse também revista, tanto sob um ponto de vista conceitual como operacional. Conceitualmente, a ideia de "necessidades habitacionais não satisfeitas” mantem-se como balizadora da definição dos componentes e indicadores do déficit, porém amplia a noção de habitação ao trazer o sentido de “serviços habitacionais" e de direitos básicos dos indivíduos. Em síntese, necessidades habitacionais aliam-se aos conceitos de que as pessoas deveriam ter direito e maior liberdade de acesso a diferentes habitações que se aproximem da satisfação de suas necessidades mais básicas.

Considerando esses aspectos conceituais, operacionalmente, também houve mudanças importantes. De uma forma geral, os cálculos do déficit habitacional e da inadequação de domicílios possuem muitos detalhes o que torna inviável explicita-los todos aqui, porém alguns merecem destaque. No caso do déficit quantitativo, para a estimativa dos domicílios improvisados, passamos a utilizar os dados do Cadastro Único para Programas Sociais ou CadÚnico. Esse foi um desafio metodológico pois combina dados de registros administrativos com pesquisa estatística amostral. Também houve mudanças importantes na identificação das chamadas unidades domésticas conviventes déficit. Identificadas a partir da recomposição dos domicílios classificados como extensos e compostos pelo IBGE, onde para a identificação do déficit também é utilizada a variável densidade por dormitório. No que se refere à inadequação, a PnadC trouxe uma série de novas variáveis que além de permitir um maior conhecimento da “qualidade” dos serviços prestados também possibilitou, a separação dos componentes de inadequação infraestrutura urbana (água, esgoto, energia etc.), inadequação edilícia (padrão construtivo, armazenamento de água, banheiro, piso, etc) e da inadequação fundiária. Um novo indicador da inadequação, que também passa a ser calculado e que está muito relacionado à qualidade de vida dos moradores é a identificação dos domicílios onde o número de cômodos servindo de dormitório é igual ao número de cômodos do domicílio, excetuando-se banheiro.

Sobre a evolução do déficit habitacional de 2016 para cá

Até meados da primeira década dos anos 2000, o componente que apresentava a maior participação relativa no déficit era a coabitação familiar. Desde então, esse componente vem reduzindo sua participação, dando lugar ao ônus excessivo com aluguel que se torna o componente prevalente na nova metodologia. A participação dos domicílios tipo rústicos tem também diminuído. Mais especificamente, a partir de 2016, além da manutenção da tendência de aumento da participação do ônus excessivo com aluguel (domicílios com renda domiciliar de até 3 salários mínimos que gastam mais de 30% da sua renda com aluguel) tem-se o aumento da participação dos domicílios improvisados no cômputo total. Com relação à inadequação, a PnadC permitiu a avaliação da qualidade da prestação de alguns serviços, como por exemplo, a frequência no abastecimento de água e energia elétrica. Especialmente neste primeiro caso, foi possível verificar, em diferentes anos, os impactos do racionamento de água ocorrido em vários estados e Regiões Metropolitanas. Além disso, a inclusão de novas variáveis permitiu a observação de necessidades até então não captados nas estimativas anteriores a 2016.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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