Impactos da guerra reforçam importância da segurança energética no caminho da transição para uma economia neutra em carbono

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O aumento da volatilidade do preço do petróleo, de acordo à evolução das expectativas sobre os rumos da guerra da Rússia contra a Ucrânia, tem alimentado a criação de diversas medidas para aliviar o impacto dos combustíveis no bolso do consumidor brasileiro, alertando pesquisadores e especialistas. Lidar com esse choque em ano eleitoral é um contexto arriscado, no qual interesses políticos contaminam análises técnicas e muitas vezes dão margem a medidas incompatíveis com a realidade fiscal do país, alertou Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro IBRE, no webinar Os gargalos energéticos que desafiam o crescimento do país. O aviso foi um reforço da mensagem deixada no FGV IBRE no I Seminário de Análise Conjuntural, quando os pesquisadores do FGV IBRE ressaltaram a necessidade de se lidar com o atual processo inflacionário sem deixar de lado a lógica da eficiência econômica. “Não dá para promover políticas compensatórias para todas as áreas”, afirma Silvia, defendendo que qualquer medida deve ter caráter temporário e se concentrar na camada mais pobre da população, para quem a alta de preços de energia e alimentos tem maior peso na cesta de consumo. “Medidas provisórias que compensem a alta dos alimentos e do gás poderiam ser adotadas, bem como para o diesel, já que este afeta a economia como um todo. Quanto à gasolina, entretanto, o correto seria estimular um uso racional e eficiente, e não pensar em subsídios”, compara. “Em economia, não existe almoço grátis, e não há espaço fiscal para se passar da conta nesse tipo de política”, diz.

Fernanda Delgado, diretora executiva corporativa do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), ressaltou no evento online – realizado pelo FGV IBRE em parceria com a Folha de S.Paulo e moderação de Fernando Canzian, repórter especial do jornal – que a importância do papel da Rússia nesse mercado aponta a um quadro de difícil equacionamento no curto prazo, que provavelmente se manterá refletido nos preços por mais tempo. “A Rússia é o terceiro maior exportador mundial de petróleo e o segundo de gás. Fala-se em incentivar o aumento da produção de outros países para reduzir a dependência do produto russo, mas as diferentes características do óleo produzido em cada país impedem uma substituição imediata para ser usado nas refinarias europeias, por exemplo”, explica. Fernanda, que é articulista da revista Conjuntura Econômica, lembra que os efeitos desse choque se somam a uma tendência prévia de aumento de preço dos combustíveis, devido tanto aos desequilíbrios provocados pelo perfil da retomada da demanda após a primeira onda de Covid-19 quanto pela redução do ritmo de produção e investimento no setor de combustíveis fósseis, provocada pelo processo de transição energética coordenado em diversas economias no caminho de uma produção neutra em carbono. “A crise que enfrentamos agora se dá com um mercado muito mais apertado, que não encontra mais oferta para onde fugir”, aponta.

Nesse sentido, Fernanda destaca que a guerra deflagrada pela Rússia tem ajudado a evidenciar a importância do papel da segurança energética no caminho a uma economia ambientalmente sustentável. “Nos últimos dois anos, a segurança foi encoberta pelas discussões sobre a transição energética, como se esta fosse mais importante e as fontes renováveis pudessem suprir imediatamente a demanda. Mas não funciona assim”, diz, ressaltando que esse movimento é um processo que, além de gradual, é social. “Ou seja, cada economia vai fazer a transição que puder, souber e couber no bolso da sua população. Se eletrificação da frota de veículos leves foi uma ótima solução para o norte da Europa, pode não ser para o Brasil, que já possui uma estrutura de biocombustíveis que envolve, entre outros atores, a agricultura familiar, e precisa ser aproveitada”, diz. E que, completa, depende da colaboração da indústria de hidrocarbonetos nesse processo. “O caminho da transição energética é inexorável, não há volta atrás. E, nesse contexto, a indústria de petróleo e gás entra com externalidades positivas como provedora de tecnologia e também investidora - seja com processos de captura e sequestro carbono, entre outros empreendimentos para equilibrar seus portfólios”, diz.

“Nossos cenários já capturavam que esse caminho da transição energética traria mais volatilidade ao mercado, e esperava-se um aumento de preços a partir do segundo semestre. A guerra só veio antecipar e deixar esse movimento ainda mais nervoso”, diz Flávio Rodrigues, vice-presidente de relações corporativas da Shell. No evento, Rodrigues ilustrou como o caminho de transição energética tem se refletido nos planos de negócio da companhia. Em 2021, o grupo firmou um compromisso global de até 2050 atingir emissões líquidas zero. Entre as medidas que fazem parte desse plano estão a redução da produção de óleo e gás, desinvestimentos em refinarias, aumento da participação no mercado de gás e fortalecer o papel da companhia como provedora de soluções em energia para outras indústrias, desenvolvendo projetos de energia renovável. “Nossos planos não mudaram. Teremos de ajustar as metas de curto prazo diante das adversidades, mas continuamos trabalhando forte para usar o portfólio de óleo e gás como grande gerador de caixa para investir em energias renováveis”, diz.

No Brasil - onde a Shell produz cerca de 400 mil barris de petróleo diários no pré-sal -  a companhia lançou em setembro do ano passado a Shell Energy, braço com o qual pretende investir R$ 3 bilhões em projetos de energia renovável no Brasil até 2025, entre os quais inclui energia solar, eólica e maior participação no segmento de produção, transporte e distribuição de gás natural. Nessa última área Rodrigues destaca a construção da termelétrica Marlim Azul, do consórcio formado por Shell, Pátria e Mitsubishi Power, em Macaé-RJ. “A previsão é de que fique pronta no início do ano que vem. Usaremos gás do pré-sal para alimentá-la, e esperamos que possa se transformar em um modelo replicável”, afirma. No segmento de energia solar, em fevereiro a Shell anunciou a formação de uma joint-venture com a Gerdau para construção e operação de um parque solar em Minas Gerais, com início de construção em 2023.O parque terá capacidade instalada de cerca de 260 MWp, e 50% do volume produzido serão destinados às plantas de produção de aço da Gerdau. E, na semana passada, a companhia anunciou o pedido de licenciamento ambiental junto ao Ibama para geração eólica em alto mar em seis estados: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, que juntos terão capacidade instalada de 17 GW. “O Brasil se configura como opção de investimento para todas as fontes que analisamos, o que inclui o potencial de ser exportador de hidrogênio”, cita o executivo da Shell. “Se essa tensão geopolítica pode deslocar investimentos do setor de energia para a Europa, o Brasil tem todas as condições de atrair parte desses recursos também. O país não só carrega potencialidade do ponto de vista geopolítico, como já é um importante player tanto no setor de óleo e gás quanto de energias renováveis.”

Para o executivo da Shell, os gargalos que impedem celeridade nesses investimentos no Brasil continuam sendo de caráter institucional e regulatório. “Talvez a sociedade, os tomadores de decisão e até nós, empresas, não percebemos ainda com clareza a urgência de se acelerar alguns investimentos e de garantir a competitividade do setor. Hoje vemos debates sobre tributar a exportação de petróleo, que vai na direção contrária à da atração de investimentos. Na parte de licenciamento ambiental, consideramos que é possível ter soluções customizadas sem perder a qualidade”, diz. Rodrigues defende a capacidade já comprovada do país de explorar oportunidades em meio a choques cíclicos, citando o caso do Pró-Álcool na década de 1970. “Sou otimista de que podemos nos tornar um gigante verde. Cabe a nós, sociedade, agentes e governo tomarem decisões adequadas e capturar mais esta oportunidade. A matriz brasileira já é diversificada, e pode ser mais ainda”, afirma.

No evento, Silvia Matos ressaltou a importância de um planejamento adequado para que essa transição fortaleça a segurança e a competitividade da energia ofertada no país. E, dessa forma, o torne mais resiliente a eventos como a crise hídrica verificada no ano passado, que encareceu o preço da energia e cuja conta a ser paga pelos brasileiros ainda se estenderá pelos próximos anos. “Esse gargalo é observado mesmo com a economia crescendo pouco. Entre 2017-19, no pós-recessão, tivemos uma expansão média do PIB de 1,4% ao ano. E, ainda que o PIB tenha expandido 4,6% no ano passado, recuperando-se do choque sanitário, ficamos 2,5% distantes da linha de tendência de pré-pandemia - e mesmo assim quase tivemos que decretar racionamento, só superado a um custo elevado de acionamento de térmicas”, reforça.

 


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