“Guerra não altera fatores determinantes para atração de investimento no Brasil”, afirma especialista

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Próxima de completar dois meses, a guerra da Rússia contra a Ucrânia entra em nova fase ofensiva, focada no leste ucraniano, sem perspectivas quanto ao seu fim. Para analistas, entretanto, a ideia de que o conflito deixará marcas ao multilateralismo vigente fica mais cristalina a cada dia. Nesta segunda-feira (18/4), em webinar promovido pela FGV EESP, Jamil Chade,  correspondente internacional, e Tatiana Prazeres,  non-resident senior fellow no think tank Center for China and Globalization, analisaram os principais fatores indicativos de mudanças adiante, mesmo com a guerra ainda em curso. 

Chade lembrou que, se à primeira vista o conflito pareceu surpreendente, uma confluência de fatores no mundo ocidental criou terreno propício para a ofensiva militar do presidente russo Vladimir Putin: a saída de Angela Merkel do poder na Alemanha; a crise gerada pelo Brexit entre Reino Unido e Europa e entre as lideranças políticas dentro do Reino Unido; o processo eleitoral na França e, no continente americano, o enfraquecimento do presidente Joe Biden. “O que Putin não esperava, entretanto, foi a capacidade de reação das potências ocidentais, ao formular um pacote de sanções muito maior do que na invasão da Crimeia (em 2014), quando estas foram insignificantes para deter qualquer ação russa”, diz. “Além disso, os russos sofreram uma resistência real, e a guerra rápida que esperavam não aconteceu.”

Para o jornalista especializado, a sequência de choques - pandemia e guerra - golpeou as organizações internacionais. No caso da Organização das Nações Unidas (ONU), ressaltou a dificuldade de esta se apresentar como mediadora oficial no conflito. “António Guterres (secretário-geral da ONU) é chamado para ajudar a formar corredores humanitários, que é algo importante, mas não resolve a guerra. A organização vive uma situação grave, pois já vinha sendo enfraquecida, bombardeada pelo nacionalismo de líderes como Donald Trump, que minam sua capacidade de reagir”. De Genebra, Suíça, onde reside, Chade também observa com preocupação a movimentação na Organização Mundial de Comércio (OMC), centro do multilateralismo. “Vários comitês da OMC - como fitossanitário, de acesso a mercados -, que sempre se orgulharam de ser entidades técnicas, colocaram suas agendas de lado para debater o impacto da guerra. É uma situação perigosa, em que o isolamento da Rússia não colabora para criar o diálogo necessário, e reforça o grande ponto de interrogação sobre quem poderá mediar uma negociação para o fim do conflito. Genebra tem medo, não apenas pela segurança europeia, mas até pelo futuro do multilateralismo”, diz. Para Chade, a posição brasileira nesses organismos até agora poderia ser identificada como um posicionamento alinhado ao histórico do Itamaraty, que sempre primou pela neutralidade. “O Brasil nunca aderiu a sanções unilaterais contra qualquer país”, lembra. “Mas não estamos vivendo um momento normal na política brasileira, e por isso o posicionamento do país hoje é tratado com desconfiança”, afirma, destacando que a atual posição brasileira poderá custar em celeridade na adesão do país à OCDE.

Tatiana Prazeres ressaltou no webinar que a guerra consolida preocupações com a segurança energética e alimentar dos países. “Vulnerabilidades nesse campo ganharão outro status no rol de preocupações dos tomadores de decisão”, diz, reforçando que os tempos de entusiasmo mundial com a liberalização econômica e a interdependência pode ter ficado para trás. “Os fatos ainda estão em desenvolvimento, o que torna impossível antecipar repercussões. Mas vejo um cenário de governança econômica muito diferente do momento em que a China ingressou na OMC, em que se alimentava a ideia de que todos ganhariam em um ambiente de abertura. O que vemos agora é o risco de grande divergência, com a formação de pólos econômicos”, afirma. 

Tal como Arthur Kroebel, da Gavekal Dragonomics, Tatiana ressalta o papel da China, aliada russa, nessa possível reconfiguração. “Por muito tempo os Estados Unidos apostaram que trazer a China para a ordem internacional, com uma política de engajamento construtivo era a melhor forma de convergir modelos, e o liberalismo econômico levaria ao liberalismo político do país. Mas nada disso aconteceu, e essas expectativas frustradas ajudam a compor o quadro atual”, diz, lembrando que a guerra comercial entre EUA e China levaram ambos os países a atuar paralelamente ao regime definido pela OMC para disciplinar o comércio entre países. “Nesse caldo, engrossado pela preocupação do ex-presidente Trump com a segurança nacional, o mundo sofre um duplo choque, começando pela Covid-19. Quando o mundo percebeu que 42% das importações de equipamentos de proteção individual antes da pandemia vinham da China, formadores de opinião e tomadores de decisão acionaram o alarme, e isso começou a impactar a governança econômica internacional”, lembra. 

A especialista ressalta que há dúvidas sobre a real extensão da “parceria sem limites”, anunciada entre Putin e o líder chinês Xi Jinping nas Olimpíadas de Inverno de Pequim, pouco antes da deflagração da guerra. Mas ressalta que a mídia chinesa trata do conflito ressaltando a responsabilidade da OTAN e dos EUA, alegando que a segurança de um país não pode se dar às custas de outro. “Ao mesmo tempo, a China defende a soberania e integridade territorial. É um exercicio de equilibrio complicado para os chineses, conciliar interesses divergentes em uma narrativa que seja coerente”, reconhece, lembrando que a posição da china foi apelidada de neutralidade pró-Rússia. “A China não votou com os russos no Conselho de Segurança, não reconheceu a ocupação russa na Crimeia, tampouco se uniu às sanções do ocidente”, enumera. “Quanto às análises de que a China se beneficiaria das oportunidades geradas por essas sanções, sem dúvida ela está bem-posicionada para isso. Mas a atuação Pequim nem de longe será suficiente para neutralizar esse impacto, por vários motivos - inclusive porque haverá receio das empresas chinesas com atuação internacional, frente ao risco de sanções secundárias”, afirma. Tatiana avalia que, até agora, as sanções envolvendo a guerra servem de lembrete a Pequim de que a China é a principal potência comercial do globo, mas que Washington ainda exerce um poder desproporcional sobre as finanças e o comércio internacional, citando a exclusão da Rússia da rede Swift, maior sistema de pagamentos internacional. “Isso pode servir de incentivo à China para buscar alternativas à ordem estabelecida, como o investimento no comércio em moeda local, ou yuan digital” exemplifica. 

Para o Brasil, Tatiana vê com ceticismo a análise de que a guerra poderia trazer ganhos ao país em atração de investimento. “Acho que são outros fatores que interferem nessa escolha. Para atrair investimentos que sairiam da China, talvez o México seja um destino mais atraente, por sua proximidade com os Estados Unidos. O Brasil sempre teve grande mercado, um dinamismo próprio, e isso não muda. O que fará diferença aqui são os fundamentos econômicos, o dever de casa que o Brasil ainda tem pendente, e que não passa a ser prescindível em contexto de guerra”, conclui.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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