Especialistas apontam diretrizes para a necessária revisão das regras fiscais brasileiras

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Em meio à pandemia, boa parte das economias mundiais lançaram mão de aumento de gastos públicos para fazer frente às demandas do sistema de saúde e no apoio a empresas e pessoas diretamente afetadas pelo choque sanitário. Para isso, tiveram de promover algum desvio de suas regras fiscais, que visam garantir uma gestão fiscal sustentável das contas públicas. Para ilustrar esse quadro, Paulo Medas, do Departamento de Finanças Públicas do FMI, afirma que cerca de 40% dos países acionaram cláusulas de escape previstas em suas regras, contra 5% durante a crise financeira de 1998-99, conforme levantamento do Fundo. Vale dizer que a crise global do fim do século 20 também suscitou a adoção de mais regras por mais países, tornando a gestão mais complexa, o que colaborou para esse aumento durante a pandemia. “Houve também suspensão temporária de regras, modificações, e até a introdução de novas, como ocorreu no Uruguai”, citou Medas esta quinta-feira (22), em seminário promovido pelo Tribunal de Contas da União em parceira com a Fiesp.

O aumento do endividamento público para conter os efeitos do choque sanitário agora suscita um movimento de revisão dessas regras em vários países, especialmente entre os que precisam adequar a necessidade de ajuste fiscal a um horizonte de mais longo prazo, apontou Luiz de Mello, diretor do Departamento de Economia da OCDE no mesmo evento. Em linhas gerais, FMI e OCDE aconselham que essa revisão garanta transparência, e busque conciliar flexibilidade com aplicabilidade, para garantir resiliência face a possíveis choques futuros e permitir o enfrentamento de desafios de longo prazo como o das mudanças climáticas e do envelhecimento da população, que tendem a alterar o perfil de receita e despesa públicas. “Também é preciso avançar do conceito de regra fiscal em si, buscando uma abordagem sistêmica da governança orçamentária”, afirma Mello.

No Brasil, a discussão está centrada no futuro do teto de gastos que, como afirma Felipe Salto, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, teve sua credibilidade afetada pelas modificações sofridas em 2021. “O teto de gastos foi modificado por três emendas constitucionais (EC 109, 113 e 114) com custo político imenso. A 109, derivada da PEC Emergencial, criou uma regra desbaratada para acionar gatilhos de contenção de despesas -  o limite definido é quando a despesa obrigatória ultrapassar 95% da primária, ambas sujeitas ao teto -, já que nunca chegaremos a esse limite sem romper o teto ao mesmo tempo e provocar um shut down na máquina pública”, diz. Já a PEC dos Precatórios, que culminou nas Emendas 113 e 114, que impõe um limite para pagamento de precatórios e uma mudança na regra de reajuste anual do teto, enfraqueceu o teto como âncora fiscal, afirma Salto. “Basta ver a evolução da estrutura a termo da taxa de juros nominal, que subiu para os dois dígitos e não desce mais. E por isso o custo médio da dívida pública não para de subir”, afirma. Nos cálculos de Salto, para estabilizar a dívida pública em torno dos 80% do PIB, pensando em um crescimento do PIB de 2% a partir do ano que vem, e uma taxa real de juros de 6%, seria necessário um superávit primário em torno de 3,2% do PIB. “Este ano, provavelmente teremos um déficit no setor público de 0,7% do PIB. De modo que o desafio em termos de esforço fiscal nos próximos dois a três anos é de R$ 450 bilhões. Como fazer isso? Não temos plano de voo”, afirma.

Custo médio da dívida pública (estoque e ofertas públicas), acumulado nos últimos 12 meses (% ao ano) e taxa Selic – meta (% ao ano)


Fonte: Secretaria do tesouro Nacional. Elaboração: IFI.

Salto afirma que a regra do teto de gastos não está ligada diretamente com o objetivo da sustentabilidade fiscal de médio e longo prazo, como são as regras que controlam a dívida e o resultado primário. “O teto é a regra que aponta que o Estado é grande e é preciso reduzi-lo”, diz. Mas ressalta que já trouxe bons frutos ajudando na aprovação da reforma da Previdência e na redução do custo médio da dívida. Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, economista-chefe do BTG Pactual, segue com a lista de créditos ao teto. “Do início dos anos 1990 até recentemente, todo ciclo de 4 anos de governo registra aumento do gasto público não financeiro. Depois do teto, pela primeira vez houve queda: este ano, deve ficar entre 18% e 18,5% PIB, menor do que no fim do governo Temer, que era 19,3%. Ou seja, registrar redução num período tão difícil mostra que nossas regras fiscais, apesar de furos, funcionaram”, diz.

 O debate sobre o melhor futuro do teto tende a se aquecer junto com o debate eleitoral, e suscita diferentes propostas, como a divulgada recentemente pelos pesquisadores do FGV IBRE Fabio Giambiagi e Manoel Pires, que combina um aumento real das despesas anuais com contrapartidas como a ampliação dos gastos que estão sujeitos ao teto. “Na minha opinião pessoal, se tivéssemos um limite tendencial de dívida combinado com uma meta de primário civilizada e um teto de gastos derivado dessa meta de primário, poderíamos ter um arcabouço fiscal bem desenhado. Sem abandonar o teto, que é importante, mas com ancoragem direta no limite de dívida”, diz Salto. Almeida defendeu no evento que é preciso cuidado com as propostas de flexibilização da regra que se voltam a garantir espaço fiscal para o investimento público, ou despesas relacionadas à agenda de proteção social. “Se quisermos flexibilizar a regra do teto para ter espaço maior para crescimento despesa, teremos que encarar dois desafios: um período muito mais longo para colocar dívida na trajetória de queda, ou discutir aumento de carga tributária”, diz. Almeida lembra que no período de 1999-2002, quando o país teve que realizar um forte ajuste fiscal com compromissos atrelados ao FMI, a saída foi o aumento da carga tributária. “O Fundo exigiu um superávit de quase 3% do PIB em pouco espaço de tempo, então essa foi a saída, inclusive lançando mão da CPMF – só esta garantia 1,4% do PIB de arrecadação anual. O problema é que hoje, quando comparamos o Brasil a outros países da América Latina, já temos uma carga tributária alta porque o gasto também é alto”, afirma. “Se somarmos previdência, educação, saúde, assistência social e seguro desemprego, chegaremos a uma despesa de 25% do PIB. Mas é um gasto pouco distributivo, e por isso não ajuda a reduzir a desigualdade. Então, se em outros países a saída ainda é aumentar a carga tributária, no Brasil, o desafio é mudar a composição do gasto, tirando dos  programas pouco distributivos para investir nos que têm impacto maior.” 

José Roberto Afonso, professor do IDP, ressalta que a reconstrução do arcabouço de regras fiscais não é algo simples, mas se torna cada vez mais urgente. “Estamos diante de uma mudança de paradigma de sociedade e da economia que demanda repensar o campo fiscal de forma ampla: do sistema tributário ao financiamento da previdência e do bem estar”, afirma, lembrando do impacto da crescente digitalização da economia no mercado de trabalho.  “É preciso promover um processo democrático de discussões abertas, sem preconceitos ou vícios, envolvendo todas as esferas e governo, recuperando nossa capacidade de fazer concertação federativa.” No caso brasileiro, Afonso destaca a necessidade de corrigir os desequilíbrios que tornam o país do “8 ou 80” em termos de regras – por exemplo, não ter limite para a dívida pública federal, e ao mesmo tempo contar com um grande número de regras constitucionais tratando de problemas gerenciais “como o caso dos precatórios, que é de gerenciamento de dívida”, cita, levando à insegurança jurídica. “Muitas vezes, são regras contraditórias que acabam levando à incerteza. E que, mesmo estando na Constituição, acabam sendo definidas no STF.”

Afonso defende a necessidade de se limpar o texto constitucional e reunir todas as regras em um só lugar, que seria um código fiscal, como já abordou em artigo da revista Conjuntura Econômica.  “O código acolheria toda essa matéria, a começar pela mais importante de todas: a lei geral do orçamento público, que é de 1964, que também precisa ser reformada”, afirma. “Não podemos mais ser um país que não consegue rever uma lei complementar de 1964 mas aprova uma emenda a cada três meses para resolver um problema gerencial. Temos que parar, aproveitar o momento em que há uma mudança de paradigmas – provocada pela economia digital, a Covid-19, a guerra – e readequar o sistema a esse novo normal”, conclui.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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