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Enigmas do governo Lula

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Depois de eleito, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva começou a mudar o tom de seu discurso, enfatizando temas que foram foco durante os governos de Dilma Rousseff e, como se sabe, tiveram resultados danosos para a economia como um todo.

Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, polêmico em várias de suas colocações – ele também é colunista da Folha de S. Paulo – em sua coluna Ponto de Vista publicada na revista Conjuntura Econômica deste mês, já em circulação, procura explicar o que tem levado o presidente a voltar a defender práticas antigas, deixando o mercado nervoso e incertezas sobre os rumos da política econômica. Uma das últimas investidas do presidente foi contra a autonomia do Banco Central e a alta taxa de juros, o que elevou a temperatura no meio político e econômico.

Partindo da premissa de que se herdou uma herança maldita do governo anterior – no que Pessôa não concorda, tendo escrito uma Coluna sobre isso –, foi criado um consenso entre os formadores de opinião de que deveria haver uma folga de R$ 200 bilhões sobre o Projeto de Lei Orçamentária que o então ministro Paulo Guedes havia enviado ao Congresso em agosto de 2022, para passar a vigorar este ano. Pelas contas de vários economistas, R$ 70 bilhões seriam suficientes para atender às demandas da campanha eleitoral e reconstrução de áreas que foram deixadas ao relento pelo governo anterior.

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Para Pessôa, “o estranhamento foi Lula ter rasgado o livro-texto de boas práticas políticas, e gastar capital político para elevar o gasto e não para medidas de ajuste macroeconômico. O capital político foi gasto no início do mandato para elevar o buraco fiscal, e, portanto, aumentar o problema para o seu próprio governo”.

Mas o que teria levado Lula a desenhar uma maior liberalidade orçamentária para o seu governo? Como mostra o pesquisador do FGV IBRE, seriam três motivos:

• Primeiro, diversos economistas com credenciais muito respeitadas – como André Lara Resende e Mônica de Bolle – têm criticado pesadamente o teto do gasto e defendido maior liberalidade com o gasto público.

• Segundo, a interpretação de Lula das consequências da maior liberalidade fiscal ao longo do período da pandemia. Para Lula, e ele já expressou esta opinião mais de uma vez, gastou-se muito em 2020 e 2021 e não foram gerados os efeitos colaterais danosos que os economistas mais ortodoxos ou fiscalistas sempre apontam. Independentemente do acerto da interpretação do presidente, foi essa a percepção de Lula dos gastos com a epidemia: há muito mais flexibilidade com o gasto público do que os ortodoxos supõem.

• O terceiro motivo, sempre lembrado pelo jornalista Thomas Traumann, está associado à análise de Lula a respeito da necessidade de não ser visto como praticante de estelionato eleitoral, o que o levaria a ter que lidar com as mesmas dificuldades de Dilma, agravadas agora pela consolidação de uma forte polarização em nossa sociedade. Ou seja, haveria, no início do governo, uma dominância da política sobre a macroeconomia no desenho da política econômica. Em um segundo momento, já com a sociedade menos polarizada, haveria espaço para a arrumação macroeconômica.

Adicionalmente, segundo Pessôa, “parece haver na estratégia de Lula o objetivo de usar uma linguagem claramente populista. Segundo o livro recentemente publicado pela dupla Thomás Zicman de Barros e Miguel Lago, três traços caracterizam o discurso populista na política: 1 - o populismo se baseia na oposição discursiva entre o “povo” e a “elite”; 2 - o populismo é transgressivo; 3 - o populismo transforma instituições”.

No livro, Barros e Lago argumentam que há o populismo autoritário, como o nazismo, em que a “elite” eram os judeus, mas há também versões democráticas do populismo. O populismo não necessariamente representa uma cultura política autoritária. E, adicionalmente, o populismo pode ser uma prática política de enfrentar e encaminhar, em democracias emergentes e muito desiguais e injustas, uma agenda de inclusão e de extensão de direitos de forma pacífica e funcional. Esse parece ser o entendimento dos autores da experiência do petismo no governo brasileiro de 2003 até 2016.

Pessoa concluiu, com base nas explicações de Barros e Lago, que “essa seria a interpretação da insistência de Lula em criticar os banqueiros, os juros e a independência do Banco Central, chegando até ao extremo de atacar os empresários em geral. Seria uma estratégia discursiva populista”.

Mesmo com essa possível racionalização do discurso de Lula, que tem sido bem mais agressivo do que se poderia imaginar, há dificuldades adicionais em explicar as escolhas de linguagem e de fala do presidente.

Pessôa mostra algumas:

• Por um lado, parece que não houve nenhum aprendizado. Lula requenta todo um conjunto de políticas públicas que não deram certo. Ao menos no discurso. Em que medida irá empregá-las ou não, ainda não sabemos. Assim, volta ao cardápio o papel dos bancos públicos e o empréstimo a obras de infraestrutura de empresas brasileiras realizadas no exterior. Se desenha um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), bem como uma nova rodada de grandes investimentos no programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV).

• Lula tem cultivado a polarização. Assim, escolheu manter o discurso de que o impedimento da Dilma foi um golpe. Difícil entender essa escolha. Boa parte de seu ministério é composto por “golpistas”. A impressão é de que, de alguma forma, Lula enxerga algum ganho na manutenção da polarização com Bolsonaro. Talvez esse discurso, que vem junto da estratégia de apoiar ditaduras de esquerda da América Latina, seja a forma de manter a direita unida em torno de Bolsonaro e dificultar a construção de uma alternativa de centro independente do petismo.

Ao singrar o campo macroeconômico, Pessôa menciona alguns tópicos que poderiam explicar a postura do presidente em relação à independência do Banco Central e as elevadas taxas de juros.

Em sua coluna Ponto de Vista, explica que “na formulação da política econômica, o roteiro está relativamente mais claro. Após a elevação do gasto em 2% do PIB em relação ao PLOA que Paulo Guedes enviara, o que sinaliza um déficit primário de 2,1% do PIB, houve um pacote do ministro Haddad com diversas medidas, a maior parte delas não recorrente, que deve reduzir o déficit de 2023 para algo em torno de 1% do PIB”.

A política fiscal tem dois efeitos diretos sobre o equilíbrio macroeconômico. O primeiro é sobre o equilíbrio no mercado de bens e serviços: a política fiscal eleva ou contrai a demanda. Partindo de um superávit primário do governo central de 0,5% do PIB em 2022 para um déficit de 1% em 2023, há grandes chances de a política fiscal ser expansionista e, consequentemente, dificultar o trabalho do BC de reduzir a inflação”.

E seriam esses pontos que levaram Lula a questionar a postura do Banco Central, abrindo um acalorado debate sobre a meta da inflação, com diversos economistas se posicionando sobre o tema. Parece haver uma visão de que, se a meta para o próximo ano for elevada para, por exemplo, 4%, haveria espaço para que os juros reais praticados nos próximos anos fossem um pouco mais baixos. Pessôa levanta que há argumentos técnicos de que a medida é contraproducente e pode, inclusive, elevar os juros reais no curto prazo –, embora acredite que ela será implementada.

O desenho do novo arcabouço fiscal, que o ministro Fernando Haddad disse que vai encaminhar ao Congresso no próximo mês, antecipando o que, anteriormente, seria feito até o final deste primeiro semestre, será o grande nó da questão. Dependendo da forma que for apresentado, haverá uma percepção de solvência.

Esse será o momento da verdade para o primeiro ano do governo Lula. Mesmo antes da proposta ser aprovada, as pessoas começarão a fazer contas. E aí chegamos no segundo impacto direto da política fiscal sobre o equilíbrio macroeconômico: as instituições fiscais, em combinação com a reputação da autoridade fiscal, na qual o apoio do Executivo no presidencialismo brasileiro é o elemento mais importante, serão suficientes para convencer as pessoas de que a trajetória da dívida pública em um horizonte de alguns anos estará equilibrada? Haverá a percepção de solvência?

Para Pessoa, haveria dois cenários:

• Se houver a percepção de solvência, o risco país se reduz, o câmbio se valoriza e os juros futuros caem. Entramos em um círculo virtuoso em que a desinflação, produzida pela valorização do câmbio, estimula a queda da taxa Selic, o que reforça a percepção da solvência. No cenário negativo, o ciclo será ao revés.

• No cenário negativo, teremos uma crise fiscal. Será menor do que a de 2015, pois os fundamentos da economia são muito melhores agora do que eram naquele ano, mas haverá estresse no mercado. A resposta de Lula será bater na porta do Congresso Nacional e pedir elevação da carga tributária. E, adicionalmente, pedir que esse ganho de carga tributária venha na forma de receita adicional não compartilhada com estados e municípios. Ou seja, conjuntamente com a elevação da carga tributária, será necessária uma nova rodada de desvinculação de receita da União. O Congresso terá que aprovar uma nova receita não compartilhada e o STF terá que aceitar a sua constitucionalidade.

Para o pesquisador do FGV IBRE, “se o Executivo conseguir resolver a restrição fiscal por meio de elevação da carga tributária, voltaremos ao cenário positivo. Se não conseguir, teremos um impasse. A restrição fiscal não será resolvida e, provavelmente, Lula terá que escolher um presidente do BC subserviente que aceite o cenário de dominância fiscal e não brigue com os fatos. A segunda metade do mandato será de contínua elevação da inflação”.

 

Leia a íntegra da Coluna Ponto de Vista na revista Conjuntura Econômica de fevereiro.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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