Em Foco

O Pinocchio extraviado

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Nossa última viagem ao exterior tinha sido no Carnaval de 2020. Quando retornamos ao Brasil, no dia 1 de março daquele ano, a COVID-19 já estava se espalhando pelo mundo.

No último dia 1° de julho, Silvia e eu, depois de meses de planejamento, embarcamos para o exterior. Íamos para São Petersburgo e Moscou, onde já havíamos estado em 2015, mas a guerra frustrou nosso destino.

Planos mudados, com destino a Milão, Bolonha, Veneza, Verona e Pádua, terminando em Paris, partimos levando a tiracolo três adolescentes: Raquel, com 17 anos, e Antônia, com 15, filha e afilhada de Silvia, respectivamente, e Sofia, minha neta, que faz 15 anos em setembro. Além de um arsenal de remédios, desde antibióticos, remédios para dor de cabeça, de garganta, enjoo, cólicas, febre, alergia, termômetro e daí para a frente.

A viagem era um presente de 15 anos para as meninas. No caso da Raquel, com um atraso de dois anos, devido à pandemia.

Para não levar ao enfado quem lê este texto, já que viajar com três adolescentes é semelhante ao filme de Ethan Cohen Onde os fracos não têm vez – que acabou sendo o nome adotado no grupo de WhatsApp para se comunicar com os pais que ficaram no Brasil -, a ida ao exterior dessa vez foi muito diferente das anteriores. Primeiro, por levar três adolescentes. E, segundo, pelas mudanças que a Covid, a guerra e a inflação estão provocando.

Embora tenha sempre evitado viajar em julho por ser alta temporada e um calor infernal – desta vez, devido as férias das meninas só poderia ser neste mês –, minha preocupação era com a horda de turistas que esperava encontrar, especialmente em Veneza e Paris.

Quando chegamos em Veneza, no dia 5 de julho, a cidade estava com pouca gente, mesmo com a Bienal Internacional de Veneza acontecendo. Não havia quase nenhum turista chinês. Poucos brasileiros, muitos alemães e americanos. Mas nada lotado. Na ponte Rialto, local mais turístico de lá, parei para comprar um Pinocchio, feito à mão, por um italiano que morou alguns anos no Recife. Ele me explicou que o turismo na cidade teve uma queda brutal depois que se proibiu o atracamento de navios de cruzeiro. E que os chineses sumiram, já que estão com sérias restrições para saírem da China devido às medidas de confinamento impostas pelo governo chinês.

Mas não é só isso. A crise de energia gerada pela guerra na Ucrânia é outro elemento que tem impactado negativamente o turismo por lá. As fábricas de vidro de Murano, um dos principais locais turísticos da região veneziana, estão com restrições para operar, devido ao preço do gás usado intensivamente na produção das famosas, e caras, peças de murano. A Itália é o segundo país da Europa que mais utiliza gás russo: cerca de 40% do produto consumido no país vem da Rússia.

As cerca de 60 empresas vidraceiras da ilha de Murano, que fica a cerca de 1 km de Veneza, precisam que seus fornos fiquem acesos 24 horas por dia para que as areais minerais que dão forma a esse vidro especial sejam fundidas a mais de 1.200 graus centígrados. Os preços do gás já aumentaram mais de mil por cento. Alguns fabricantes já fecharam as portas. E os turistas, diante dos preços inflados, escasseiam.

Mas não foi apenas em Veneza que o número de turistas encolheu. Em Paris, com temperaturas passando dos 40 graus – dia 19, quando saímos de lá, os termômetros marcavam 44 graus, com sensação térmica de uns 50 graus –, a maioria era de brasileiros e americanos, além de alemães. Chineses, poucos. Mas a cidade não estava lotada. Em Versailles, especialmente a Sala dos Espelhos, que costumava ficar entupida de gente, sobretudo de grupos de chineses, dava para andar com certa facilidade, sem esbarrar nas pessoas ou pedir licença para passar. O lugar mais lotado foram os Jardins de Monet, em Giverny. Mas é um lugar relativamente pequeno.

Além da Covid, que tem barrado a saída de chineses, a guerra reduziu o fluxo de turistas russos. A inflação na Europa também tem contribuído para uma forte queda no número de turistas. Coisas que comprávamos em viagens anteriores foram cortadas. Os preços dos alimentos subiram significativamente.

Lembro-me de uma creperia onde levamos as meninas, depois de caminhar pelas escaldantes ruas de Paris. Ao chegar a conta, um susto: uma singela garrafinha de água Evian, cinco euros. Nas máquinas das estações de metrô de Paris, martírio para qualquer perna e joelho pelas infindáveis escadas, compra-se a mesma garrafinha por menos de dois euros. Nos supermercados, por menos ainda. Há uma enorme diferença de preços de um lugar para outro. O que lembra um pouco o que ocorre por aqui e é um sinal da disseminação da inflação.

Outra diferença marcante de viagens anteriores, além do calor que remete à Porta do Inferno de Rodin – mais de mil pessoas já morreram de calor na Europa –, é o caos que está nos aeroportos. Há falta de mão-de-obra. Muitos voos cancelados, extravios de bagagens, e brigas e discussões nos guichês das companhias são relativamente comuns. No último dia 11 de julho, por exemplo, a Delta Air Lines, companhia norte-americana de aviação, enviou um avião vazio ao aeroporto de Heathrow, na Inglaterra, para resgatar cerca de mil malas extraviadas. Terminais em Londres e outros pela Europa enfrentam o “caos aéreo”. Após o corte de funcionários durante a pandemia, empresas aéreas e aeroportos estão sem capacidade para acompanhar o aumento de viajantes no primeiro verão do continente europeu após a reabertura das fronteiras e flexibilização dos protocolos impostos pela pandemia.

O “caos aéreo” que ocorre em vários aeroportos europeus poderia ser ainda pior se os chineses estivessem fazendo turismo como antes, se a guerra não tivesse eclodido, se a inflação não estivesse se espalhando pelo mundo e o fantasma da pandemia tivesse desaparecido. Muita gente ainda posterga viajar com receio de se contaminar.

Com as companhias aéreas reduzindo o número de voos, overbooking ocorre com muita frequência. Quando estávamos na fila de embarque de Paris para o Brasil, muita gente corria o risco de não embarcar. Felizmente, só tivemos atraso em um voo, de Paris para Milão. Mas nenhuma mala extraviada.

O que extraviou foi o Pinocchio que comprei na Profumo Di Legno, em Veneza. Ficou perdido em algum hotel ou trem de alta velocidade que nos levava de cidade em cidade na Itália. Perda irreparável.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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