Em Foco

A dura vida de L...

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

L... trabalha aqui em casa há alguns anos. Mora em uma comunidade em Niterói. Tem uma vida duríssima, batalhando diariamente para sobreviver. Tem um filho com problemas mentais que, recentemente, fugiu de casa e foi encontrado em um hospital: foi espancado, perdeu a fala e está numa cadeira de rodas, usando fraldas. Há duas semanas, uma sobrinha de 17 anos, que estava internada por ter se envenenado com veneno de rato, teve uma parada cardíaca e morreu. Sua filha A... que reveza o trabalho aqui em casa – cada uma vem a cada quinze dias -, engravidou há três anos. É mãe solteira de B..., aumentando as responsabilidades, preocupações e gastos da avó e da mãe que também não tem vida fácil.

L... está tentando construir uma casinha, para fugir do aluguel da comunidade onde mora. Vira e mexe, pede adiantamentos para comprar uma porta, uma janela, cimento, areia. Ajudamos, com prazer. Compra cervejas para vender na praia, entre outras coisas. É uma pessoa de extrema confiança, dedicada e que nos ajuda muito. A vida seria muito melhor se houvessem mais L... pelo mundo.

Ela faz boa parte das compras aqui em casa. Faz uma peregrinação pelos supermercados, sacolões, procurando garimpar preços mais em conta. Mas sempre que retorna, o comentário é o mesmo: “seu Claudio, olha o punhadinho de coisas que comprei. E gastei esse monte de dinheiro”, me mostrando as notas de uns três ou quatro lugares em que foi na busca de preços mais baixos. Todos os dias, fica no celular procurando onde encontrar preços mais baratos. Onde tem oferta. Quando sai às compras, demora: tem que fuçar onde as coisas estão mais em conta. Teima em fazer água sanitária que, segundo ela, subiu muito de preço. Às vezes, desembarca aqui em casa, com um galão de cinco litros do produto que ela produziu na sua casa.

Além dos preços que deixa L... de cabelo em pé, ela reclama da falta de produtos, da qualidade que piorou, das embalagens que diminuíram.

Tomei um pouco do tempo de quem se arrisca a ler esse breve texto, para voltar ao tema que torna a vida de L... ainda mais difícil: a inflação que em março subiu 1,62%, acima das previsões de mercado, surpreendendo o presidente do Banco Central, o que pode sinalizar uma nova rodada de alta de juros. Em doze meses, a inflação brasileira acumula uma alta de 11,3%.

Trabalho recente dos pesquisadores do FGV IBRE, Aloisio Campelo Jr. e André Braz, mostrou que a inflação afetou mais as pessoas de renda mais baixa. Tomando como base o IPC-FGV entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022, a inflação das famílias de renda mais baixa subiu 16,8% no período e para as de renda mais alta, 13,6%. Para um IPC-FGV acumulado a alta bateu na casa dos 15,2%. Para os mais pobres, com rendimento de até 1,5 salário-mínimo, os preços dos alimentos ficaram 16,7% mais caros, enquanto para os mais ricos a alta foi de 10,3%. Na habitação, o quadro foi igual:  alta de 6,60% para os mais pobres e de 4,68% para os mais ricos.

Ontem, o IPC-S da segunda quadrissemana de abril, calculado pelo FGV IBRE aumentou 1,84%, mantendo uma trajetória ascendente, saindo de 0,64% em 15 de março, 0,94% na apuração fechada em 22 daquele mês, pulando para 1,35% no dia 31, e mantendo a curva embicada para cima no dia 7 de abril com uma alta de 1,62%. O IPC-S capta a variação de preços em sete capitais brasileiras.

Mas voltando ao trabalho de Campelo e Braz, eles mostram que em 2021 a inflação meio que se democratizou, no mau sentido, se espraiando por todas as faixas de renda.

“Em 2021, a inflação acelerou para todos os grupos de renda e foi, de forma não virtuosa, mais ‘democrática’, com o maior espalhamento dos reajustes de preços. Entre os mais pobres, os grupos Alimentação e Habitação continuaram sendo os vilões, mas os Transportes surgiram como um novo fator de pressão para a inflação de 8,88% no ano. Entre os mais ricos, a alta de 18,5% nos preços de Transportes respondeu por nada menos que 43% da inflação de 8,72% no ano. Entre os itens que mais influenciaram neste resultado estão as altas de preços de 49,12% da gasolina, 10,66% do automóvel novo e de 42,67% nas passagens aéreas”.

O dragão da inflação: a inflação se espraia por todas as camadas da sociedade

Neste mês, deve haver um refresco em um dos itens que tem pressionado a inflação: a energia elétrica com o fim da bandeira tarifária de escassez hídrica que nos acompanhou por vários meses.

Desde 2015 a tarifa de energia elétrica tem subido mais do que a inflação. No final de 2021 a alta acumulou 114%, ante os 48% de inflação acumulada no período, segundo dados da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel). A energia residencial teve um aumento médio anula de 16,3% entre 2015 e 2016, enquanto o IPCA, que mede a inflação oficial do país, calculado pelo IBGE, teve uma variação de 6,7%: o que representa para a energia elétrica um crescimento 237% acima da inflação no período.

Apesar dessa provável trégua, a difusão da inflação tem se mantido em patamares elevados, o mesmo ocorrendo com os principais núcleos de inflação calculados pelo Banco Central. O que mostra que baixar os preços será uma tarefa árdua, dada as pressões externas. O mundo enfrenta uma onda de alta generalizada de preços, amplificada com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Nos EUA, a inflação foi 1,2% em março, ante 0,8% em fevereiro. Nos últimos doze meses, a inflação já chegou aos 8,5% em março, maior índice desde dezembro de 1981.

 Por aqui, desde o final do ano passado, a difusão dos preços tem aumentado. Como mostrado no gráfico abaixo, de 378 preços de produtos coletados pelo IBGE, 77,19% estavam em alta. Se forem excluídos os alimentos, o quadro piora mais ainda: 77,51% dos produtos apresentavam difusão em seus preços. Com isso, os principais núcleos de inflação acompanhados pelo Banco Central estão muito pressionados. Enquanto o IPCA acumulava uma alta de 11,30% nos últimos doze meses encerrados em março, a média dos cinco núcleos de inflação saltou de 8,40%, em fevereiro, para 9,01%, em março.

A inflação se espalha


Fonte: Banco Central. FGV IBRE.

 

A pressão nos núcleos


Fonte: Banco Central e IBGE

Mas voltando a L... e a milhões que lutam, diariamente, pela sobrevivência. Mario Henrique Simonsen dizia que se “a inflação aleija, mas o câmbio mata”. No caso dessa enorme legião de pessoas, a inflação é um veneno mortífero. Se a ela for acrescido o medíocre crescimento brasileiro nas últimas décadas, resultado de uma baixíssima produtividade (Observatório da Produtividade), e de políticas econômicas desastradas.

O desemprego continua elevado. Só voltará ao patamar de um dígito se a economia crescer a uma taxa de 3,5% nos próximo quatro a cinco anos, conforme previsão da equipe do Boletim Macro FGV IBRE. O que, no momento, parece fora do radar. Não querendo ser pessimista, mas se há luz no fim do túnel ela está muito tênue.

Emprego: A educação e o mercado de trabalho

Ainda teremos que conviver com enormes desigualdades sociais. Viver na pobreza é estar em constante pressão. Por isso que políticas públicas bem desenhadas, que ataquem de frente a pobreza e os menos favorecidos, é o caminho para minimizar esse quadro. Além de políticas econômicas que coloquem o país nos trilhos do crescimento sustentável.

É pelo que torcemos e que devemos nos empenhar para ajudar a mudar.

                                                        

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Agradeço a Silvia Matos e a Mayara Santiago da Silva, pesquisadoras do FGV IBRE, pelas informações que tornaram parte desse texto possível.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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