Em Foco

Um passado desconhecido

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Não conheci meu avô por parte de pai. Quando nasci, ele já havia falecido. Por ser neto de português, esta semana, depois de um longo período, que foi esticado pela pandemia da COVID-19, a Conservatória de Lisboa encaminhou o número do meu assento, o que me confere a condição de cidadão português. A próxima etapa é requerer o Cartão Cidadão e o passaporte.

No longo processo para conseguir minha cidadania, tive que desvendar parte da vida de meu avô. Durante toda minha infância e adolescência, quase nunca se falou de meus avós paternos.

Com meus pais já mortos e sem laços com os descendentes de meus avós – irmãos e irmãs de meu pai faleceram e seus filhos eram desconhecidos para mim e meus irmãos –, a parte paterna da família foi meio deixada de lado, sendo engolida pelo lado dos avós maternos: ele, de avós portugueses; ela, de pais italianos, nascida no Brasil.

Não sabia nem onde, em Portugal, meu avô havia nascido. Com quem havia se casado. Quando chegou ao Brasil. O que fez durante sua vida por aqui. Garimpando e vasculhando o seu passado, a cada descoberta ondas de emoção me invadiam por saber tão pouco do passado de um avô que não conheci e que estaria me dando a chance de ter dupla cidadania. E por estar mergulhando num desconhecido passado que fazia parte de minhas origens.

O padre José Calixto Andrade, vigário da igreja paroquial de São Jorge, do distrito da Diocese de Funchal, na Ilha da Madeira, registrou o nascimento de meu avô em 1.864, com o nome de Manoel Gomes Conceição. Na época, meu avô já tinha dois filhos com Virginia Gonçalves: eram dois meninos, Manoel, com 5 anos, e João, 3 três. Foi a primeira descoberta, pois não sabia que meu avô tinha filhos quando estava em Portugal. E, também, nunca me falaram de Virginia, com quem se casou na ilha da Madeira.

Os dados da chegada de meu avô ao Brasil não são dos mais confiáveis, mas acredita-se que ele desembarcou por aqui por volta de 1.884/1.890 para trabalhar nas fazendas de café da região da Alta Araraquarense, no interior de São Paulo. Como a esmagadora maioria dos imigrantes, vinha com uma mão na frente e outra atrás, como se diz: sem um tostão.

Fuçando mais no passado para atender os pedidos da advogada que estava cuidando da documentação em Lisboa, no registro civil de Araraquara, graças à dedicação dos funcionários do cartório, uma certidão de óbito encontrada informava que Virginia havia falecido aos 50 anos, em maio de 1.908. Na mesma certidão, a informação de que meu avô já era dono de dois pequenos sítios na região. Seus dois filhos também vieram da Ilha da Madeira ajudar o pai a trabalhar nas lavouras e guardar cada centavo conseguido.

A cada documento que conseguia, mais de 150 anos depois do nascimento de meu avô, me envolvia um sentimento de nostalgia e tristeza por não ter conhecido a história, que conflitava com um certo orgulho da feroz batalha que ele, Virginia e seus dois filhos, travaram na terra desconhecida, trabalhando duro como a maioria dos imigrantes que aqui aportaram.

Um dos maiores problemas que encontrei foi a repetição de nomes que os portugueses adotavam. Manoéis, Joaquins, Marias, Antonios proliferavam nos documentos, em um intrincado emaranhado, muitas vezes desconcertante. Chegava uma hora, folheando cada papel que encontrava, me remetia a “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, que narra a história da família Buendía na fictícia cidade de Macondo.

Viúvo, meu avô, aos 40 anos, voltou a se casar. Minha avó paterna era uma jovem de 21 anos na época, de nome Emiliana Cayres da Conceição, de “prendas domésticas”. O casamento ocorreu apenas seis meses após a morte de Virginia, em outubro de 1.908. Emiliana morreu 34 anos depois, aos 53 anos de idade. Dois anos depois, em 1.942, morria meu avô, de um câncer na mão, possivelmente pela constante exposição ao sol no trabalho nas lavouras.

Não há muita precisão nas datas dos documentos que consegui reunir. O nascimento de meu avô, por exemplo, lavrado na igreja, pode conter incorreções pela difícil leitura do texto escrito à mão. Mas se houver algum erro, será, sem dúvida pequeno, sem comprometer a essência do que foi conseguido nesse mergulho a um passado que desconhecia.

Do casamento com minha avó, seis filhos: Maria, Carlos, Virginia, Ludovinia, Antonio, meu pai, e Amélia.

Como o passado de meus avós paternos, a história da vida de cada um de meus tios também sempre foi de pouco contato e informação, à exceção de Ludovinia, a quarta filha, irmã mais próxima de meu pai e que acabei conhecendo. Eu e meus irmãos nunca soubemos, com clareza, o que meu avô amealhou durante a vida. Rabos de conversa pescados em várias ocasiões indicavam que, quando morreu, era um homem com um razoável patrimônio que foi distribuído entre os filhos.

Em 2017, depois de esperar por três anos o número do assento para dar entrada no passaporte português, a Conservatória de Lisboa indeferiu o pedido: a advogada que havia contratado em Lisboa desapareceu, fazendo com que perdesse o prazo para a entrega de documentos.

Casado com uma cidadã portuguesa, contratei um escritório aqui no Brasil, para entrar, novamente, com o processo. Depois de mais quatro anos de espera, o processo foi concluído.

Mas, independentemente de qualquer coisa, pesquisar a história de meu avô paterno foi como viajar no tempo carregado de emoção a cada documento que lia, na busca de uma parte de minhas origens.

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Como meu avô, milhares de portugueses vieram para o Brasil em busca de oportunidades. Numa primeira fase, entre 1.500, época do descobrimento, e 1.700, com a opulência da Corte portuguesa, inicialmente quem chegava por aqui era uma elite próspera interessada em investimentos no setor açucareiro e nas riquezas que a terra descoberta proporcionava. Junto com essa leva da elite, também vieram cristãos-novos e ciganos, que fugiam das perseguições religiosas, além de uma migração forçada pela Corte portuguesa que tinha por objetivo povoar a nova colônia.

Uma nova composição tomou corpo entre o período que vai de 1.760 a 1.841, com muitos portugueses pobres, da região do Minho, chegando ao Brasil, junto com a entrada de portugueses mais abastados e instruídos. Isso foi mais evidente entre 1.808 e 1.817, com a vinda da Corte ao Brasil.

Mas a imigração em massa foi na época em que meu avô decidiu deixar a Ilha da Madeira com mulher e dois filhos, que compreende o período que vai de 1.851 a 1.930, quando ocorreu um aumento na taxa de natalidade em Portugal, excedente de mão-de-obra no campo pela introdução da mecanização agrícola, com o empobrecimento de pequenos proprietários rurais. Nesse período, quem aqui desembarcava era pobre, destacando-se grande número de mulheres e órfãos.

Dez anos antes de terminar esse período, em 1.920, desembarcava por aqui Adolfo Correia Rocha, com 13 anos, para trabalhar na fazenda de café de seu tio, em Minas Gerais. Adolfo, que retornou a Portugal cinco anos depois, se tornou um dos maiores escritores da língua portuguesa, com o pseudônimo de Manoel Torga. É dele, entre outras, a obra prima a Criação do Mundo.

Imigração portuguesa


Fonte: IBGE.

Mas se o Brasil era visto como o Eldorado para milhares de portugueses, nos últimos anos o que tem ocorrido é um aumento na saída de brasileiros para morar no exterior. De 2012 até este ano, o total de brasileiros vivendo no exterior saltou de 1,9 milhão para 4,2 milhões, segundo dados consolidados através de informações enviadas pelos consulados em 2020.

Esse fenômeno parece que não mostra sinais de arrefecimento. Segundo levantamento da FGV Social, 47% dos brasileiros entre 15 e 29 anos gostariam de sair do país, se pudessem, um recorde histórico: entre 2005 e 2010, esse percentual era de 26,7% e entre 2011 e 2014, a taxa batia na casa dos 20,1%, conforme matéria publicada na revista Deustche Weller.

Total de brasileiros vivendo no exterior


*Segundo dados mais recentes. Consolidados a partir de informações enviadas pelos consulados em 2020. Fonte: Ministério das relações exteriores.

 

Para onde vão os brasileiros

Fonte: Ministério das Relações Exteriores.

Normalmente, o desejo de deixar seu país está ligado a perseguições religiosas, guerras, perseguições políticas ou agravamento da situação econômica. O que parece ser o caso brasileiro, com a economia andando de lado já há algum tempo, alta taxa de desemprego, inflação voltando a comer o poder de compra, juros subindo, violência urbana, desalento.

A instabilidade política é outro fator que se agravou com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff e, em 2018, com a eleição do presidente Bolsonaro que tem gerado muita incerteza, não só no campo político e econômico, mas na educação, na cultura, no meio ambiente.

Nosso país foi construído, desde a colonização portuguesa, por levas de imigrantes de todas as partes do mundo. Temos a maior colônia japonesa fora do Japão, por exemplo. É uma certa virada de maré, como se o Brasil estivesse se transformando em um exportador de pessoas que perderam a ilusão de que o Brasil seria o país do futuro.

O que, sem dúvida, aumenta o desalento com o futuro desse país. Mas continuaremos tentando, sem nos entregar.

Um bom Natal a todos. Com esperança.

Agradeço a contribuição de Bráulio Borges, pesquisador-associado do FGV IBRE.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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