Em Foco

O desafio do desemprego e da fome

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Os números mostram que a economia brasileira continua a se recuperar depois do tombo do ano passado, quando o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 4,1% depois de ter crescido minguados 1,8%, em 2018, e 1,4% em 2019. A aceleração da vacinação no país e em boa parte do mundo são ingredientes de otimismo à volta de uma normalidade, se não totalmente, mas com um grau bem maior de flexibilidade. As projeções dos analistas são de que o PIB brasileiro possa crescer entre 4,5% a 6% até o final deste ano. O Boletim Macro FGV IBRE de junho projeta uma expansão de 4,8%.

Alguns indicadores sinalizam que a recuperação segue firme e forte, se nenhum fato atrapalhar, o que é difícil de prever dada as constantes tensões políticas que surgem no dia a dia. Os índices de confiança empresarial e do consumidor, calculados pelo FGV IBRE, subiram 4,3 e 4,7 pontos em junho ante maio, respectivamente, enquanto a Nível de Utilização da Capacidade Instalada (NUCI) avançou 3 pontos no mesmo período. Ocorreram recuos, como a da produção de veículos, que sofreu com a falta de insumos, especialmente de chips, criando uma demanda represada que, com a normalização do fornecimento, tende a dar mais impulso à atividade econômica. Pesquisa recente da Anfavea, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, mostrou que 75% das pessoas querem trocar de carro ainda este ano, quer seja novo ou usado.

Mas a falta de insumos não se resume apenas à indústria automobilística, espraiando-se para os setores químico, plásticos, vestuários, bens de capital, entre outros.

Embora os indicadores de alta frequência utilizados pelos economistas para fazerem suas projeções continuem sendo favoráveis à recuperação, a retomada da economia brasileira é sustentável? É uma questão que está sempre sendo colocada à mesa, num país em que o investimento e a poupança interna são extremamente baixos, reduzindo a capacidade de crescimento de nossa economia. O tema será debatido em webinar que o FGV IBRE e a Folha de S. Paulo realizam no próximo dia 21.

Mas se a recuperação vem ocorrendo, há uma cadeia de distorções que precisam ser melhoradas ou ajustadas. Uma delas é a questão do emprego e das políticas públicas para amparar os milhões de brasileiros que foram jogados na linha da pobreza. Mundo afora, especialmente nos países pobres e em desenvolvimento, a miséria aumentou de forma significativa, com uma maior concentração de renda nas mãos de poucos.

Relatório divulgado na última segunda-feira (12), mostrou que mais da metade de todas as pessoas subnutridas no planeta, cerca de 418 milhões, vivem na Ásia: mais de um terço, ou 282 milhões, na África, e 60 milhões na América Latina e Caribe. Mas o aumento da fome foi maior na África, onde 21% da população está na linha da subnutrição, mais que o dobro de qualquer outro continente. O relatório é uma publicação conjunta da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Programa Mundial de Alimentação (PNA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Comentando os trágicos dados do relatório, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres afirmou que “somos lembrados de que estamos tremendamente fora do caminho de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030 (erradicar a fome do planeta). Dados novos nos informam que entre 720 milhões a 811 milhões de pessoas passaram fome no mundo em 2020, 161 milhões a mais do que em 2019”.

Para o Brasil, os dados da FAO apontam que 23,5% da população sofreu com a insegurança alimentar moderada ou grave entre 2018 e 2020, enquanto entre 2014 a 2016 a fatia era de 18,3%. Em números absolutos isso quer dizer que houve um salto de 37,5 milhões, para 49,6 milhões de pessoas no período.

O relatório menciona que 2020 foi sombrio, com mais de 2,3 bilhões de pessoas, cerca de 30% da população do planeta, sem acesso a alimentação adequada. A má nutrição não poupou as crianças: no ano passado 149 milhões de crianças menores de 5 anos sofriam de desnutrição crônica, ou eram muito baixas para sua idade; 45 milhões tinham subnutrição aguda e perto de 39 milhões estavam acima do peso. E quase um terço das mulheres em idade reprodutiva sofrem de anemia.

Os efeitos da fome e da má alimentação


Fonte: FAO.

 Como já mencionei em vários Em Foco, o desemprego e a desigualdade são os principais desafios que o planeta tem pela frente, já que são combustíveis para explosão de conflitos sociais e uma ameaça a qualquer democracia.

O auxílio emergencial, que deveria acabar agora em julho no Brasil, foi prorrogado por mais três meses. Embora a atividade econômica esteja se recuperando, o desemprego continua em patamares elevados, sem sinais de arrefecimento. Pelo contrário: está sendo engrossado por pessoas que não estavam procurando emprego e, agora, com o aquecimento da atividade econômica, estão indo ao mercado em busca de ocupação.

É bom lembrar que o auxílio emergencial, como o próprio nome diz, não pode ser dado indefinidamente, não sendo uma solução estrutural. Primeiro, porque não há dinheiro suficiente para ficar bancando essa estrutura. E, segundo, porque não basta proteger, mas voltar a introduzir milhões de pessoas que foram alijadas do mercado de trabalho. É como diz um velho ditado: não adianta ficar dando peixe, é preciso ensinar a pescar.

Como lembra José Roberto Afonso, articulista da revista Conjuntura Econômica, antes mesmo da eclosão da pandemia já havia uma multidão de pessoas vivendo à margem da economia, que ficaram mais visíveis a partir do começo do ano passado, quando a pandemia ganhou musculatura.

“A exemplo do resto do mundo, a proteção social, incluindo a Previdência, foi construída em torno da figura do emprego formal, financiada por empregadores e empregados em cima da folha salarial. Essa estrutura já estava fragilizada antes da chegada do coronavírus, por conta da opção dos empregadores por contratar serviços, no lugar de assinar carteira, e depois pela automação crescente que já chegou à fase dos serviços, bem como a tendência mais recente dos próprios trabalhadores, sobretudo os mais jovens, preferindo serem independentes ou empreendedores do que terem um emprego fixo”, explica Afonso, em artigo publicado na edição deste mês da revista.

Como menciona Afonso, a crescente parcela das pessoas que trabalham sem carteira já deveria saber, mas a pandemia deixou claro que a perda de emprego e renda os deixa desamparados, sem seguro-desemprego, FGTS e, no futuro, sem aposentadoria. Embora o Brasil tenha aprovado importante reforma previdenciária, ela teve seu foco mais na questão do déficit fiscal.

Tomando emprestado gráfico elaborado por Afonso, é enorme a “boca de jacaré”, como os economistas dizem quando duas curvas se afastam, que se formou entre pessoas desocupadas e ocupadas no Brasil, processo que se acelerou em 2020.

Taxa de desocupação e população ocupada


Elaboração própria. Fonte: Ipea.

O Banco Mundial já havia alertado, em seu World Development Report 2019, para as mudanças no mercado de trabalho, a quebra do contrato social e a necessidade de um nível mínimo universal de proteção social, especialmente na economia informal, através de reformas em subsídios, na regulação do mercado de trabalho e na política tributária. Outro ponto sinalizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que Afonso cita em seu artigo, é a baixa cobertura que o Brasil dá aos desempregados, com uma abrangência de apenas 7,8%.

Estudo anual da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), órgão internacional composto por 37 países que trabalham juntos para compartilhar experiências e buscar soluções para problemas comuns, lançado na semana passada, mostra que a crise sanitária aumentou em 20 milhões o número de pessoas que perderem seus empregos. Na média dos países da OCDE, só na segunda metade de 2023 estima-se que o mercado de trabalho volte aos níveis de antes da pandemia. O alerta é que o risco dessa demora torne o mercado de trabalho vulnerável para um aumento do desemprego a longo prazo.

Editorial do O Estado de S. Paulo da última terça-feira (13), com o título “A hora da responsabilidade social”, com base em seminário promovido pelo FGV IBRE em parceria com o jornal em maio último, dentro do ciclo de debates FGV IBRE – O Estado de S. Paulo, evidencia a preocupação com a necessidade do Estado encontrar formas de proteger os mais vulneráveis e incentivar sua autonomia, num momento em que, além da pandemia, “as transformações tecnológicas criaram modalidades de trabalho descobertas pelas proteções vinculadas ao emprego assalariado”.

Citando trabalho do pesquisador do FGV IBRE, Daniel Duque, no final de 2019 21% da população brasileira, ou seja, 44,5 milhões, viviam abaixo da linha da pobreza. No ano passado, com o auxílio emergencial, isso foi reduzido temporariamente para 18,3%. Mas se isso não tivesse ocorrido, Duque estimou que o percentual teria subido para 29,5%. Veja o webinar “As políticas públicas frente à pandemia”, e a cobertura feita pelo Blog da Conjuntura.

Aqui, como em boa parte do mundo, a preocupação com a desigualdade ganha força. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Executivo deve submeter ao Congresso um programa de renda básica que está numa lei aprovada há 17 anos, mas que nunca saiu do papel.

Nessa linha, o Senado decidiu pautar uma discussão sobre a Lei de Responsabilidade Social que chegou a entrar na pauta de plenário, mas foi enviado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a pedido do governo. O projeto, de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), com base na proposta elaborada por Fernando Veloso, pesquisador do FGV IBRE, Marcos Mendes, pesquisador do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e Vinícius Botelho, ex-pesquisador do FGV IBRE e doutorando do Insper, prevê que a taxa geral de pobreza seja reduzida em 10% da população em três anos, a partir do momento em que a começar a valer. Também deve cair para 2% a taxa de extrema pobreza, também em três anos. Pelos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, 24,7% da população brasileira estava na pobreza e 6,5%, na extrema pobreza (Programa de Responsabilidade Social Diagnóstico e Proposta).

Encontrar soluções para esse complexo problema, onde, além da pandemia, as novas tecnologias estão expulsando pessoas do mercado de trabalho, não será uma tarefa fácil. Mas é uma necessidade cada vez mais presente na vida de todos.

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O presidente da França, Emmanuel Macron, anunciou no começo da semana que um passe sanitário será exigido para que se possa frequentar locais de cultura e lazer. O que levou a uma corrida pela imunização na França, com 1,7 milhão de franceses indo procurar locais de vacinação ou fazendo agendamento. O nível de vacinação estava caindo, segundo dados do site Our World in Data.

Não deixa de ser um exemplo de política pública, pois a vacinação não é uma decisão individual, mas uma questão de saúde pública, embora muitos não pensem dessa forma. Em muitos países, relevantes fatias da população resistem em se vacinar. O exemplo maior é dos Estados Unidos, especialmente em cidades do meio oeste e com forte ligação com os Republicanos mais radicais. No Brasil, embora ainda haja resistência, ela arrefeceu significativamente. Pesquisa recente do DataFolha mostra que 94% das pessoas ouvidas querem se vacinar, recorde desde que a pesquisa começou a ser feita em agosto do ano passado. Apenas 5% disseram que não vão se vacinar: em dezembro esse percentual era de 23%.

Outra pesquisa, também do DataFolha, sinaliza que, pela primeira vez, mais da metade da população acredita que a pandemia está controlada (53%), enquanto 41% acreditam que ela continua fora de controle. Ver uma luz no fim do túnel, que traz esperança, é animador.

O risco é que essa percepção, quando ainda estamos com níveis elevados de casos e mortes diárias, embora com a média móvel em queda, traga um relaxamento nas medidas de segurança, como uso de máscaras e aglomerações.

Vacinação no Brasil
(% da população)


Fonte: DataFolha.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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