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Lições do passado

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

O Brasil pegou o que os economistas chamam de “vento de cauda”, o que sopra na direção do voo e dá um impulso no avião, com a alta das commodities, com enorme poder de empurrar uma recuperação mais robusta da economia. E é o que as estimativas sinalizam, com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) oscilando de uma faixa de 4,5% a 6% este ano, dependendo se você é da turma dos mais conservadores ou dos mais liberais e otimistas.

Das exportações brasileiras feitas até maio último, as commodities foram responsáveis por 69% em relação aos cinco primeiros meses de 2020, puxadas pelos preços que subiram 27% contra 4,8% do volume embarcado. Com a recuperação mais rápida das economias desenvolvidas, os ganhos do Brasil podem ser ainda maiores.

Não é a única comemoração que o governo pode estar fazendo. Por quase dois anos, um dos principais assuntos dos economistas era a debilidade das contas públicas e o grande risco de uma paralisação da máquina pública por falta de dinheiro. Nunca se falou tanto em déficit público, teto dos gastos como recentemente.

Mas a inflação voltou a mostrar a sua cara, o que não acontecia desde 2017, inflando os recursos da União que pode entrar em 2022 com uma folga da ordem de R$ 30 bilhões no teto dos gastos.

Fatos impensáveis no ano passado, quando as estimativas eram de que a dívida bruta do país poderia chegar perto dos 100% do PIB este ano. Agora, com esse alívio, já se projeta um percentual menor, ao redor dos 84%.

São boas notícias nesse quadro de pandemia que, ainda que já tenham morrido mais de meio milhão de brasileiros no espaço de um ano e meio, o aumento da vacinação, ainda que a passos lentos e com sobressaltos, traz alguma luz no final do túnel.

Se a vacina é essencial, os demais cuidados devem ser mantidos, como o uso de máscaras, não aglomeração, higienização das mãos. Repetir esse mantra, que os especialistas vivem alertando, nunca é demais. Só vacinamos 15,3% da população com as duas doses e cerca de 35% com a primeira, segundo dados do consórcio de veículos de imprensa, e em vários países o contágio ainda está presente, seja pelas novas cepas, seja pela não imunização geral da população, seja por relaxamento nas orientações de cuidados sanitários.

O uso de máscaras é uma delas. Aqui, vemos diariamente exemplos de desrespeito a essa norma elementar de proteção, sem falar em aglomerações, campos férteis para a propagação do vírus. Nos Estados Unidos, movimentos antimáscara e antivacina têm levado grande preocupação à administração Biden, já que, mesmo com a vacinação acelerada, esses movimentos são fortes propagadores do vírus. Atualmente, nos EUA, as mortes estão em patamares baixíssimos: dia 23 último, só foram relatados pouco mais de 300 óbitos.

Não há dúvida que a pandemia só será controlada quando a população do planeta estiver vacinada.

Se olharmos os números do Worldometer, acompanhamento real sobre casos de Covid-19 pelo mundo, à exceção da China, podemos verificar que há uma tendência de queda a nível mundial do número de mortos. Em alguns países, pode estar ocorrendo um aumento dos casos, mas os óbitos estão caindo, o que pode ser atribuído ao processo de vacinação.

Resolvi selecionar, além do Brasil, mais dois países mais duramente afetados pela pandemia, que demonstram isso. O caso mais impressionante é o da Índia, que depois de uma onda avassaladora iniciada em março último, viu despencarem os novos casos e óbitos. No Brasil, os casos continuam subindo e as mortes estacionadas em patamares elevados.

Novos casos Covid-19
(Média móvel últimos 7 dias)


Fonte: Worldometer.

 

Mortes Covid-19
(Média móvel últimos 7 dias)


Fonte: Worldometer.

Se estamos a caminho de um controle da pandemia, alguns exemplos do passado podem ajudar e servir de lição. Em 1910, uma epidemia começou a se alastrar no nordeste da China. Os sintomas: tosse, com sangue, muita coceira na pele, que ficava roxa. Como o coronavírus, ninguém sabia de onde teria surgido e como a doença infectava e agia dentro do corpo humano, até levar à morte.

Um médico, Wu Lien-Teh, filho de imigrantes chineses, nascido em Penang, uma ilha ao largo do arquipélago da Malásia, descobriu, depois de várias autópsias, que a epidemia era causada por uma bactéria, a Yersinia pestis, semelhante à da peste bubônica. Lien-Teh identificou que ela tinha se originado na Manchúria e era uma doença respiratória, propagando-se pelas vias respiratórias.

O que ele fez? Com o apoio do governo chinês, induziu que se usasse máscaras, especialmente os profissionais de saúde. E sugeriu, já naquela época, a implantação de rigorosos lockdowns, que tiveram que ser feitos com a ajuda da polícia. Em quatro meses, a epidemia havia sido vencida, graças ao “homem por trás da máscara”, como ficou conhecido Lien-Teh.

O relato do que ocorreu naquela época foi publicado no O Estado de S. Paulo da última quarta-feira (23/6), reproduzindo reportagem de Wudan Yan, do jornal The New York Times, e pode servir de exemplo de que forma o uso de máscara se tornou um instrumento de saúde pública nos países asiáticos. No Ocidente, há forte resistência ao uso de máscaras por parcelas consideráveis da população.

Num passado mais recente, outro exemplo. Em 2008, uma doença respiratória aguda em jovens adultos foi detectada no México, espalhando-se rapidamente para os Estados Unidos. A gripe suína, a influenza H1N1, virou pandemia em 11 de junho de 2009, segundo anunciou a Organização Mundial de Saúde (OMS), infectando entre 700 milhões e 1,7 bilhão de pessoas, em 214 países e territórios. O número de mortos é incerto, variando de 200 a 545 mil. Havia quatro décadas que o mundo não enfrentava uma pandemia.

Diferente do que está ocorrendo com a COVID-19, nesse um ano e meio de pandemia, a gripe suína afetou mais crianças, adolescentes e jovens: a faixa etária entre 0 e 29 anos respondeu por 62,5% dos casos em 2009, enquanto aqueles com mais de 60 anos representaram somente 4,8%, segundo dados para o Brasil.

É bom lembrar que a humanidade, vira e mexe, passa por uma pandemia. A mais mortal de todas, até agora, foi a gripe espanhola, entre 1918 e 1920. O número de mortos é elástico: vai de 17 milhões a 100 milhões. Estima-se que mais de 500 milhões de pessoas, um quarto da então população mundial, foi infectada. O Brasil não se safou da gripe. Foram cerca de 35 mil óbitos, entre eles o do presidente da República da época, Rodrigues Alves. Ao contrário da gripe suína, os adultos foram o alvo principal da gripe espanhola.

Mas o que fez o Brasil para enfrentar a gripe suína? Em agosto de 2009, dois meses depois da OMS declarar que uma pandemia se espalhara pelo mundo, o então presidente Lula, um ano e quatro meses antes de terminar seu segundo mandato, anunciou a compra de um imunizante do laboratório francês Sanofi Pasteur, ainda em testes. Seriam compradas 18 milhões de doses, com transferência de tecnologia ao Instituto Butantan para fabricação de mais 33 milhões de doses. Mais dois contratos foram fechados: um de 40 milhões com a canadense GlaxoSmithKlein, em novembro de 2009, e um outro, em janeiro de 2010, para 10 milhões de doses, com a Organização Pan-Americana de Saúde, braço da OMS.

Isso possibilitou que, em três meses, o Brasil vacinasse 88 milhões de pessoas contra o H1N1, barrando uma provável circulação maior do vírus.

É bom lembrar que, ao contrário do que estamos vivenciando hoje, o combate à epidemia do H1N1 não teve conotações políticas. Haveria eleições no final de 2010, com o PSDB concorrendo à presidência com o candidato José Serra, então governador de São Paulo, contra Dilma Rousseff, do PT. E o Butantan, que fica em São Paulo e é controlado pelo governo do Estado, naquela época o PSDB, ficaria responsável pela fabricação das vacinas no processo de transferência de tecnologia. Dilma venceu no segundo turno com 56,05% dos votos válidos, contra os 43,95% de Serra. Ou seja: opositores políticos, mas juntos no combate a um mal maior, a epidemia.

O que se vê hoje é uma corrida para ver quem chega na frente. A vacina virou estratégia de marketing e instrumento político, um ano e meio antes das próximas eleições presidenciais. Fica claro, pelo exemplo de 2009, que a combinação da compra simples de vacinas com acerto de transferência de tecnologia para produção interna, sempre que possível, é fator determinante para um combate eficaz na imunização.

A compra, pura e simples, é mais rápida. Já a transferência de tecnologia pode se arrastar por mais tempo. Tempo que não se tem quando estamos diante de uma pandemia mundial, com alta taxa de transmissão e mortes. É evidente que produzir vacinas localmente é um grande trunfo, nos libertando da dependência externa.

Hoje ainda patinamos na vacinação, apesar de toda a experiência acumulada e reconhecimento mundial do Sistema Único de Saúde (SUS) em imunizar a população, por falta de vacinas. Essa semana, várias cidades tiveram que interromper a imunização. Quadro que pode estar mudando com o desembarque de maiores quantidades de vacinas este mês e a partir do segundo semestre.

O que nos traz esperança de podermos ter um final de ano menos sombrio.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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