Em Foco

Resquícios imperiais

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

A história está cheia de exemplos de governos que não tinham conhecimento do que se passava no País que governavam. Isso era bastante comum em séculos passados, onde, enquanto a população morria de fome, a Corte vivia esbanjando recursos. É o caso do reinado de Luiz XIV, que se encastelou com sua Corte em Versalhes, até que explodiu a Revolução Francesa entre 1789 e 1799, que acabou com os privilégios da aristocracia levando, em 1793, o rei Luiz XVI e sua mulher, Maria Antonieta, a serem decapitados “por alta traição”. Três anos antes, em 1789, a queda da Bastilha foi o marco que espalhou a revolução pela França.

Por 300 anos, os Romanov ficaram no poder na Rússia. Depois de algumas tentativas fracassadas de mudar o regime, em 1917 a revolução acabou com a dinastia. Em 17 de julho de 1918, a família imperial russa dos Romanov foi executada por membros da liderança bolchevique. O czar Nicolau II, sua esposa e seus cinco filhos foram fuzilados na Casa Ipatiev, em Ecaterimburgo, onde estavam em prisão domiciliar.

Esses exemplos se multiplicaram mundo afora com regimes monárquicos, e ainda podem ser vistos em alguns países, com nova roupagem, mas com os mesmos ingredientes de sede pelo poder, autoritarismo e uma nostálgica busca de reviver os tempos áureos de monarquias absolutistas, regimes imperiais, autoritários.

Mesmo aqui no Brasil, nos tempos imperiais, a corte portuguesa que fugiu de seu país pela iminente invasão das tropas de Napoleão Bonaparte, manteve as tradições de quando estava no poder em Portugal. No Brasil, também se tentou mudar o regime – a revolta dos Inconfidentes foi uma dessas tentativas, entre outras.

Estou fazendo esse breve relato, que é bem mais amplo e complexo se formos estudar os regimes monárquicos e imperiais mundo afora, para chegar à fascinante análise que Murillo de Aragão, colunista da revista Conjuntura Econômica, traz sobre a vida em Brasília, nossa capital federal, que ainda guarda resquícios da era imperial, onde a proximidade e a intimidade com o poder valiam mais do que as instituições.

Para Aragão, “Brasília emerge como um fascinante estudo de caso da dicotomia entre ser mais importante do que parece e parecer ser mais importante do que realmente é. Esse enigma, enraizado no coração da vida política e social da cidade, reflete as complexas dinâmicas de poder e percepção que caracterizam o epicentro da governança brasileira”.

Para embasar sua avaliação, Aragão cita alguns pontos que, a seu ver, deixam claro esses resquícios dos tempos imperiais:

• Em Brasília, muitos dos indivíduos que verdadeiramente “fazem acontecer” operam nos bastidores, longe dos holofotes da mídia e da atenção pública. A capacidade de influenciar o processo decisório – seja por persuasão, retórica eficaz ou habilidade de se apresentar como autoridade – pode, em muitos casos, eclipsar os méritos reais e as realizações concretas de anônimos. Outras vezes, os que realmente fazem acontecer é que preferem o anonimato. Seriam “heróis” anônimos das formulações das políticas públicas e do processo decisório. 

• Nesse grupo estariam os políticos, assessores, técnicos e funcionários públicos dedicados, cujas decisões e ações diárias são cruciais para o funcionamento do governo e do país, mas que, por natureza de seus papéis, permanecem menos visíveis e, consequentemente, parecem menos fundamentais do que realmente são. Mas também são advogados, representantes de interesses organizados, líderes sindicais e associativos, jornalistas, entre outros que participam do jogo do poder. 

• Brasília é também o palco onde alguns buscam projetar uma imagem de importância e influência que excede sua real contribuição ou posição. O que cria uma atmosfera típica em Brasília na qual a percepção da relevância, da significância e da influência de um indivíduo ou entidade pode ser amplamente desproporcional à sua contribuição efetiva ou impacto real.

• A influência desmedida da percepção sobre a realidade tangível traz implicações profundas para diversas esferas da vida, desde o ambiente corporativo até a arena política. Na política, candidatos com maior presença midiática ou habilidades de comunicação superiores podem ofuscar adversários com menos carisma ou visibilidade, embora com propostas de políticas mais substanciais. O mesmo ocorre com agentes de interesses que buscam parecer mais influentes do que são e, até mesmo, vendendo o que não podem entregar, no afã de se inserir no processo decisório. 

• A dicotomia entre ser influente e parecer influente se reflete não apenas nas complexidades inerentes ao exercício do poder e da influência, mas também nos desafios de discernir o valor real em um contexto saturado de representações e aparências. E desafia tanto os observadores quanto os participantes do cenário político de Brasília a questionar e aprofundar seu entendimento sobre o que constitui a verdadeira importância e como ela é manifestada.

• Ao mesmo tempo, tal dicotomia ressalta a importância de uma avaliação crítica das figuras que frequentemente ocupam o centro do palco, questionando até que ponto sua visibilidade corresponde à sua contribuição real para o bem comum. Muitos parlamentares que são apontados como influentes não têm grande destaque midiático, operando mais nos bastidores. Já os que são apontados como destaque na arena legislativa muitas vezes aparecem mais do que decidem, têm mais luz do que calor. 

• Muitos pensadores trataram do fato de a História contada ao mundo não ser a verdadeira História dos acontecimentos. Primeiro, porque a História termina sendo contada pelos vencedores – e, quando surge uma “contra-História”, tampouco ela é a verdadeira, já que segue a narrativa dos que não foram os vencedores. No processo decisório de Brasília, muito do que ocorreu não foi contado, pois os processos são entrecortados por momentos de opacidade e de omissão dos atores que ali atuaram. Não deixa de ser fascinante.

• A dicotomia de importância em Brasília é um lembrete poderoso sobre a complexidade das dinâmicas de poder e percepção na capital política do Brasil. Desvendar esse enigma não é apenas um exercício de análise política, é também um passo crucial para o desenvolvimento de uma sociedade mais informada, justa e representativa. Na qual a verdadeira importância é reconhecida e valorizada, independentemente da visibilidade.

• A predominância do Estado sobre a sociedade tem profundas ramificações na forma como a política é conduzida e percebida no Brasil. Ela molda as relações entre os diversos poderes, a distribuição de recursos e oportunidades, e até mesmo as próprias noções de cidadania e participação política. Nesse contexto, é fundamental reconhecer que a democracia brasileira ainda enfrenta desafios significativos em sua consolidação, especialmente no que diz respeito à redução das desigualdades sociais e ao fortalecimento das instituições democráticas.

• Para além das discussões ideológicas e das agendas políticas momentâneas, é necessário um olhar crítico e analítico sobre os processos políticos em curso. Somente ao compreendermos as complexidades e as sutilezas desses processos poderemos buscar formas mais eficazes de promover mudanças positivas e construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Recentemente, vi uma série na HBO MAX: O Regime. É um misto do que foi exposto acima, com toques de comédia e humor negro. É um país imaginário, que nos leva a lembrar da Rússia, a tensão com a China, onde o autoritarismo reina absoluto. Como na época monárquica, imperial, há uma verdadeira ojeriza pelo povo.

Leia a íntegra do artigo de Murillo de Aragão na edição de abril da revista Conjuntura Econômica.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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