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Avaliação e reflexões sobre o sistema de saúde

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

O Brasil, apesar de seus inúmeros problemas, preso numa teia de baixa produtividade, problemas fiscais, captura do Orçamento por grupos organizados – veja o que vem acontecendo com o enorme crescimento das emendas parlamentares –, subsídios, políticas públicas mal desenhadas, só para citar alguns, tem algumas iniciativas que deram certo e o colocam na vanguarda. Uma delas, e acredito que a principal, sob a ótica de trazer bem-estar à população, é o Sistema Único de Saúde, o SUS. Com ele, o Brasil saiu à frente da maior parte dos países em desenvolvimento, oferecendo uma política universal de saúde, antecipando as orientações das Nações Unidas em relação às Metas de Desenvolvimento Sustentável. Ao longo de seus 35 anos, o sistema público adotou políticas de sucesso tais como o Programa Nacional de Imunização, Estratégia de Saúde da Família, combate ao tabagismo, controle e tratamento do HIV/AIDS, oferta dos serviços de alta complexidade e organização da rede de urgência e emergência. Com a pandemia da COVID-19, foi essencial para vacinar a população, apesar das dificuldades em se chegar a lugares mais remotos e estímulos para que a população não se vacinasse. Por sinal, estamos enfrentando uma queda nos índices de vacinação, especialmente de crianças, extremamente preocupante.

Apesar disso, o Brasil é o único país com um sistema público universal com participação minoritária do gasto público em saúde. Essa composição evidencia que o montante de recursos públicos é insuficiente para ofertar uma cobertura adequada de serviços.

Duas principais especialistas em Economia da Saúde do país, Mônica Viegas Andrade e Kenya Noronha, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trazem uma importante avaliação sobre o SUS e seus problemas, em artigo publicado na edição de abril da Conjuntura Econômica.

Mônica e Kenya partem do pressuposto que o principal entrave para o SUS está no subfinanciamento. Para embasar a avaliação, lançam mão de números: “O Brasil tem destinado, em média, desde os anos 2000, cerca de 9% do PIB em saúde, valor próximo ao observado na maioria dos países da OCDE. A particularidade do caso brasileiro decorre da composição desses gastos. Em 2019, enquanto o setor privado foi responsável por 57,8% do gasto total, no SUS esse percentual foi de 42,2%. Mesmo no sistema americano, que é majoritariamente privado, os gastos públicos correspondem a 48% do total. O Brasil é o único país com um sistema público universal com participação minoritária do gasto público em saúde. Essa composição evidencia que o montante de recursos públicos é insuficiente para ofertar uma cobertura adequada de serviços. O subfinanciamento do SUS se traduz em longas filas de espera e indisponibilidade de alguns serviços, comprometendo a integralidade do atendimento”.

Mas não é somente a questão financeira que dificulta uma expansão e melhoria nos serviços prestados pelo SUS. Há uma ineficiência nos gastos com saúde, que podem estar associados ao contexto em que o Sistema está inserido, associado à organização do sistema de saúde.

• Em relação aos fatores de contexto, o estado de saúde depende das condições socioeconômicas e ambientais nas quais os indivíduos estão inseridos. No Brasil, coexistem perfis epidemiológicos associados a níveis diferentes de desenvolvimento. Observa-se, de um lado, um aumento da prevalência de doenças crônicas devido ao processo de envelhecimento populacional.

• De outro lado, persiste ainda elevada incidência de doenças infectocontagiosas e parasitárias refletindo condições de vida precárias, sobretudo de saneamento e infraestrutura, e baixos níveis educacionais. Além disso, o Brasil vivencia problemas associados à violência e acidentes de trânsito que pressionam o desempenho do sistema, tanto em relação aos gastos quanto a perdas relacionadas à saúde, incluindo mortes precoces e perdas de produtividade

No caso do saneamento básico, o quadro é muito ruim, embora tenha havido avanços nos últimos anos. Ainda temos quase 35 milhões de pessoas sem acesso a água tratada, 100 milhões sem coleta de esgotos, pouco mais de 47% da população brasileira. E apenas 46% dos esgotos são tratados no Brasil. Isso tem forte pressão sobre o sistema de saúde, pois pessoas ficam doentes, além de afetar o desempenho escolar das crianças, mais vulneráveis a doenças transmitidas pela água não tratada e pelo esgoto não tratado.

A situação é ainda mais grave quando se fala em saneamento rural. A Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (AESBE), em sua série de estudos Universalizar, traz um levantamento sobre a situação do saneamento rural do país que pode ser acessado aqui.

Releia: Os impasses do saneamento.

Para Mônica e Kenya, em relação à questão organizacional, há elementos macro estruturantes, associados ao desenho do sistema de saúde, e elementos no nível micro, como problemas de gestão e remuneração dos prestadores.

Os principais pontos que elas destacam:

• No Brasil, o setor privado tem um papel duplicativo ao SUS na medida em que não há restrições à oferta de serviços de saúde. Esse mix traz vantagens, como a possível redução da demanda no setor público e a liberdade de escolha individual de serviços de saúde, mas também apresenta dilemas como a inequidade (indivíduos com cobertura privada possuem dupla forma de acesso a serviços de saúde) e a fragmentação do cuidado.

• O mix público-privado tem consequências também sobre a demanda pelos serviços no SUS, principalmente através de dois mecanismos. O primeiro refere-se à incorporação tecnológica no SUS. Ao operar através da rede privada contratada, o Ministério da Saúde perde, em certa medida, o papel de centralizador da decisão de uso e incorporação de tecnologias.

• O segundo mecanismo está associado à possível seleção de risco de procedimentos e de indivíduos no SUS. A seleção de risco de procedimentos ocorre quando indivíduos com cobertura parcial ou com rede restrita buscam acesso a serviços de saúde no SUS. O ressarcimento ao SUS é o mecanismo implementado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para compensar o setor público pelo uso de serviços por beneficiários de planos de saúde. Dados do Painel Financeiro de Ressarcimento ao SUS, disponibilizado pela ANS, mostram que a despesa total de beneficiários de planos de saúde com atendimentos realizados no SUS em relação ao total da despesa assistencial do setor de saúde suplementar alcançou 0,94% em 2019. Esse sistema, entretanto, ainda apresenta dificuldades e problemas de morosidade.

• Uma das propostas que têm sido discutidas é a integração dos subsistemas público e privado através de um sistema único de informação. Essa integração é um dos pontos nevrálgicos que precisam ser enfrentados para a consolidação do sistema de saúde brasileiro. Esse sistema deve compreender o cartão nacional de saúde (já implementado) que permita a identificação única do cidadão nos dois subsistemas e prontuário eletrônico interligando todos os provedores das redes pública e privada. Esse sistema permitiria diversos avanços, entre os quais, aumento da eficiência dos gastos nos dois setores, público e privado.

 

Leia a íntegra do artigo na edição de abril de Conjuntura Econômica.

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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