Em Foco

Uma nova história ou uma volta ao passado?

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Quando era editor da Gazeta Mercantil, primeiro jornal de economia do País, que se tornou referência por muitos anos, fechando as portas por incompetência em sua gestão, fiz uma matéria que virou manchete do jornal. Era sobre o fracasso do programa da indústria naval brasileira, que recebeu muito dinheiro, especialmente do BNDES, para a construção de navios. Fazia parte de um projeto do governo de impulsionar a indústria brasileira com subsídios, garantia de conteúdo nacional e outras benesses para vários setores. A indústria naval era um deles.

Essa semana, ao ver o lançamento do programa Nova Indústria Brasil (NIB), isso voltou à minha mente. Hoje, como naquela época, há dois lados: os que defendem essa nova tentativa do governo do PT de reativar a indústria, já que é o setor que mais emprega, mais gera valor agregado, mais paga impostos. E os que defendem que da forma que o plano está desenhado está fadado ao fracasso, sendo uma volta ao passado. É a disputa entre os economistas ortodoxos e heterodoxos. Em uma explicação bem rasa, os ortodoxos tendem a ser mais conservadores, estão mais no centro-direita e se apegam muito à racionalidade lógica formal e à evidência empírica. Já os heterodoxos estão mais à esquerda, com propostas mais progressistas, buscando uma lógica mais informal. Como é o caso de boa parte dos economistas do atual governo.

Mas há alterações importantes em relação aos planos anteriores. Primeiro, o valor de R$ 300 bilhões de 2023 a 2026, o que dá algo ao redor de R$ 62,5 bilhões por ano. Não há escolha de setores específicos como feito anteriormente, como as “campeãs nacionais”, que todos sabem foi um fracasso, com a criação de oligopólios. Não houve nenhum acompanhamento da eficiência do dinheiro emprestado, o que acabou gerando muita corrupção e ineficiência. Está no colo na ministra Simone Tebet, do Planejamento e Orçamento, acompanhar a qualidade desses gastos públicos (ver entrevista da ministra à Conjuntura Econômica de janeiro). O que é um enorme avanço em relação aos planos de reindustrialização anteriores. Também há a proposta de se ampliar a produção de produtos e ou insumos dos quais o País depende muito das importações, como fertilizantes e insumos para fabricação de vacinas. O que, se bem conduzido, será um passo importante.

Outros avanços: buscar melhorar a nossa produtividade, que engatinha há anos, como mostra o Observatório da Produtividade Regis Bonelli do FGV IBRE, caminhar para a sustentabilidade ambiental, com aumento de fontes alternativas em nossa matriz energética, aumentar a inovação, ampliar as exportações.

Mas como nada vem de graça, há no plano coisas estranhas que, a princípio, acho que não darão certo. Por exemplo: incentivar empresas por meio de compras governamentais – o que pode levar a preços mais elevados, sem concorrência desenterrar fábricas de chips – na minha época, as tentativas foram um fracasso. Hoje isso está bem mais difícil pelo avanço tecnológico em países que lideram a produção de chips no mundo, como China, Taiwan, Coreia do Sul e Japão, e não temos escala para competir em preço e qualidade. Desde que me conheço por gente, mais subsídios serão dados à indústria automobilística que produz carros de qualidade bem inferior à de outros países. Não há menção ao aumento das importações, especialmente de máquinas e equipamentos. Comprar máquinas mais baratas lá fora é melhor do que incentivar a produção de máquinas agrícolas no País, como consta da NIB. Pelo nosso atraso nessa área e a oferta, especialmente de máquinas agrícolas chinesas mais baratas e de alta eficiência, creio que não temos muitas chances de fazer isso dar certo.

O plano é muito extenso, o que pode levar a perda de foco. Abrange uma enorme gama de ações. Em janeiro, a Carta do IBRE publicada na edição de Conjuntura Econômica se debruçou sobre o tema, antes do lançamento da NIB.

Normalmente, quando se fala em industrialização, sempre é usado o exemplo da Coreia do Sul e de países do Leste Asiático. Ao contrário do Brasil, os países da região lançaram mão de uma intervenção para “acelerar a readaptação da estrutura produtiva a vantagens comparativas em acelerada mutação, à medida que aqueles países acumulavam velozmente capital físico e humano, o primeiro na esteira da poupança doméstica daquelas sociedades e o segundo como consequência de fantásticos avanços educacionais”, diz Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE na Carta. 

Alguns pontos relevantes são destacados por Pessoa e Bráulio Borges, também pesquisador associado do FGV IBRE, na Carta de janeiro:

• Mesmo nos países mais bem-sucedidos em suas experiências de política industrial, é preciso cautela antes de se pensar que é possível promover pela intervenção governamental qualquer mudança na estrutura produtiva julgada adequada pelos planejadores econômicos. No caso brasileiro, o caso para a política industrial fica ainda mais restrito por algumas razões.

• Não há o processo acelerado de mudança de vantagens comparativas que justifique a intervenção adaptadora do Leste Asiático. No Brasil, a poupança doméstica permanece baixa, condicionando o juro elevado e a tendência à apreciação do câmbio. Há carência tanto de capital físico quanto humano, no segundo caso pelo lento avanço da qualidade da educação, a partir de níveis comparativamente reduzidos.

• Adicionalmente, os recursos públicos para intervenção são escassos, pela competição com os gastos em transferências e benefícios sociais e previdenciários de um Estado de Bem-Estar que os países do Leste Asiático optaram por não adotar.

• O Brasil é o país do “direito adquirido” e de programas de subsídio que nunca terminam, com um ambiente político e institucional em que é difícil para o Estado descontinuar políticas que deram errado.

• As políticas industriais brasileiras devem preferencialmente apoiar setores alinhados às vantagens comparativas, como no caso do conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento do agronegócio, com destaque para o papel da Embrapa. E, nos casos mais raros em que se tenta política industrial à revelia das vantagens comparativas, como o sucesso da Embraer, deve-se focar em recortes muito cuidadosos – a empresa especializou-se em algumas etapas, projeto e montagem, de um segmento específico, aviões médios de linhas regionais –, acoplados a projetos educacionais (o ITA), e fortemente voltados ao mercado externo

• Por outro lado, particularmente para um país vulnerável à “maldição dos recursos naturais” como o Brasil, a política industrial é uma ferramenta útil para tentar promover a diversificação produtiva, reduzindo a dependência • econômica em relação aos setores primários. O grande desafio é que os ganhos da intervenção setorial superem os custos, do ponto de vista do bem-estar da sociedade. Trata-se também de um balanço delicado entre as falhas de mercado e as falhas de governo ao tentar consertar as primeiras.

• Na questão de como tornar um pouco menos escassos os recursos públicos para a política industrial, nos casos em que ela é recomendável, uma possível fonte é a redução dos subsídios e benefícios à agropecuária e ao agronegócio em geral. Em princípio, pode parecer uma recomendação indevida, já que esses são setores em que sabidamente o apoio governamental “deu certo”. Por ter maturado plenamente como setor por excelência em que o Brasil atinge níveis globalmente impressionantes de produtividade e competitividade, o agronegócio pode abrir mão, ao menos parcialmente, de subsídios explícitos, implícitos e renúncias de receitas para produção e consumo desses produtos. Pelo menos R$ 85 bilhões anuais é o volume estimado desses subsídios e renúncias, que poderiam ser redirecionados para tentativas bem pensadas, e com metas e limites bem estipulados, de diversificação produtiva.

• Algo semelhante vale para a extração de petróleo e gás, setor hoje altamente competitivo no Brasil em função de uma política industrial bem-sucedida realizada via Petrobras nas últimas décadas, mas que ainda recebe subsídios relevantes no âmbito de várias políticas, como o Repetro.

A NIB foi lançada com críticas e aplausos. É evidente que uma recuperação da indústria dará ao país mais chances de sair da armadilha da renda média. Ou seja: quando perdemos a vantagem competitiva na exportação de bens manufaturados. Somos incapazes de acompanhar as economias mais desenvolvidas no mercado de alto valor agregado. Sofremos com baixos investimentos, lento crescimento e baixa diversificação industrial.

No artigo “Desindustrialização no Brasil: fatos e interpretações”, de Regis Bonelli (falecido em dezembro de 2017), Samuel Pessôa e Silvia Matos, todos pesquisadores do FGV IBRE, publicado no livro O Futuro da Indústria no Brasil – desindustrialização em debate, publicado em 2013, organizado por Edmar Bacha e Monica de Bolle, Regis refez a série histórica da participação da indústria de transformação no Valor Adicionado (VA), como mostrado abaixo, onde há uma forte perda do papel da indústria ao longo dos anos. Nos últimos anos, até houve uma recuperação, mas ela só ocorreu nos valores correntes, pois os preços dos bens industriais cresceram acima dos preços médios da economia.

Participação da Indústria de Transformação no VA - Valores Correntes


Fonte: FGV IBRE.

A esperança é que, se não todo, parte da NIB se concretize, sem grandes traumas e abra maiores possibilidades para o país.

Leia a íntegra da Carta do IBRE na edição de janeiro da revista Conjuntura Econômica.

 

Agradeço a Silvia Matos as informações sobre a atualização dos dados apresentados no artigo Desindustrialização no Brasil: fatos e interpretações

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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