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Os impasses do saneamento

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, de Brasília

A corrida para se cumprir as metas de universalização do saneamento no País, prevista para 2033, esbarra em muitos obstáculos. O maior deles é a falta de recursos e de acesso às linhas de crédito, especialmente por parte das companhias estaduais de saneamento.

No final de novembro, a revista Conjuntura Econômica acompanhou os debates sobre o setor de saneamento promovidos pela Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), realizado em Brasília, por ocasião dos 39 anos da entidade.

Há um certo ceticismo de que até 2033 o Brasil consiga alcançar a cobertura de 99% de acesso à água potável e 90% de esgoto, dado o grande déficit ainda existente no País. Cerca de 100 milhões de pessoas ainda não têm tratamento de esgoto; nas regiões mais pobres, especialmente no Norte e Nordeste, o quadro é ainda mais crítico.

O BNDES, um dos principais financiadores do setor, mandou uma mensagem clara no evento, de que não faltarão recursos para financiar o esforço da universalização. Foi o que afirmou Marcelo Trindade Miterhorf, economista da Diretoria de Infraestrutura e Mudança Climática do Banco, em sua exposição, reproduzida, em seus pontos principais, por Solange Monteiro, editora da revista Conjuntura Econômica, em matéria da edição de dezembro.

Este ano, o BNDES aprovou R$ 20 bilhões, valor que deve se repetir em 2024, mas há necessidade de dobrar esses valores para atingir a universalização.A questão é que a maioria desses desembolsos foi destinada à iniciativa privada. O desafio do banco, segundo Miterhorf, é ampliar a participação das companhias públicas nesse bolo de recursos.

O pouco acesso das companhias públicas ao BNDES é mostrado em trabalho de sua autoria. Das 26 companhias estaduais que operavam entre 2016 e 2019, apenas metade conseguiu financiamento. Somente três ficaram com mais da metade dos recursos no período estudado.

“O fato é que o PAC colaborou para colocar o saneamento em pauta e ampliar os investimentos no setor, mas não foi capaz de desconcentrar esses desembolsos”, disse, destacando que a heterogeneidade de capacidades econômico-financeira, técnica e institucional é uma limitação para além da disponibilidade de recursos. E o BNDES tem procurado alternativas para ampliar o acesso das empresas estaduais de saneamento em suas linhas de financiamento.

Ainda que a evolução da cobertura de saneamento seja diferente em cada região, mitigar os custos dessa carência – que envolvem de atraso educacional devido a doenças de veiculação hídrica ao comprometimento de atividades econômicas como o turismo e a imobiliária – é de responsabilidade nacional. “Sempre falamos do setor como sinônimo de saúde, mas, no papel, as políticas e os recursos não refletem essa prioridade ao saneamento”, afirmou Neuri Freitas, presidente da Aesbe e da companhia de saneamento do Ceará, Cagece.

Uma das questões centrais que permeou os dois dias de debates foi de onde virá o dinheiro. São necessários R$ 90 bilhões por ano para se atingir a universalização de água e esgoto no País.

Levantamento feito pela Aesbe mostra que entre 2002 e 2021 a média anual de investimentos foi de R$ 35 bilhões, em valores corrigidos pelo IGP-DI para dez/21. “Os recursos previstos no Novo PAC – de R$ 10 bilhões para esgotamento e R$ 4,2 bilhões para água de 2024 a 2026 – ajudam bastante, mas não são suficientes. Temos que identificar novas fontes, modelagens, parcerias para garantir a atração desses investimentos”, disse Freitas. O que inclui uma agenda junto aos bancos públicos para a adequação de regras para acesso a financiamento por parte das companhias estaduais.

Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro FGV IBRE, ressaltou que um dos caminhos para se garantir esse impulso é combater a má alocação de recursos públicos. “Esse é um problema estrutural brasileiro, que envolve nossa fragilidade institucional para lidar com interesses difusos da sociedade. Se avaliássemos onde cada real gasto pode maximizar o retorno para sociedade, o saneamento certamente estaria no topo das prioridades”, afirmou. Estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2014 já apontava que cada dólar gasto em saneamento básico produz um ganho de US$ 4,3, especialmente devido à redução de custos com atenção à saúde e ampliação da produtividade da economia. Para Silvia, a falta desse critério – o que abre margem por exemplo, para gastos tributários e creditícios nem sempre meritórios – cria importantes problemas estruturais.

Outro ponto destacado, e que pode complicar ainda mais o caminho à universalização, é o atual projeto da reforma tributária. Segundo estudos da Aesbe, em sua série Universalizar a ampliação da alíquota do setor vai impactar a tarifa e reduzir a capacidade de investimentos das companhias públicas. A defesa da Aesbe é de que o saneamento recebesse o mesmo tratamento dos serviços de saúde, que poderão ter isenção total de IVA (composto por CBS e IBS). A PEC aprovada no Senado, que tramita na Câmara, colocou o saneamento entre os setores que deverão contar com um regime específico de tributação, a ser definido posteriormente, por lei complementar. “Ainda que saibamos do potencial do saneamento para melhorar a qualidade de vida da população e a economia, não vemos essa sensibilidade resultar em ações práticas”, reforçou Freitas.

Dirigentes de companhias estaduais presentes no evento ainda destacaram que a busca por uma cobertura de saneamento ampla e eficiente – o que incluiu a gestão de resíduos sólidos – também está ligada à agenda ambiental.

Ricardo Soavinski, vice-presidente da Aesbe, presidente da Companhia Estadual de Goiás (Saneago), compartilhou a experiência que lidera em Goiás, de adoção de práticas ESG – conceito que envolve temas ambientais, sociais e de governança – transversal à atividade da empresa. A iniciativa teve início em 2020, com a adoção de um comitê de sustentabilidade. “Não tem receita de bolo. Tem que olhar a realidade e ter planos permeáveis a todos os setores de forma técnica e com objetividade”, diz. Um dos resultados mais vistosos dessa iniciativa é na gestão de perdas, que na capital chegou ao percentual de 13%.

Rudnei Toneto, da USP, ressaltou no evento que o saneamento já sofre impactos das mudanças climáticas, e fazer parte da solução também está na agenda do setor. “Na oferta de água, o setor já foi afetado, o que aponta à necessidade de investimentos redundantes para garantir mais segurança. Desastres naturais também demandam ações de contingência”, enumera, sinalizando riscos de que a conta para a universalização saia ainda mais cara. O recorde de calor em outubro deste ano, somado à falta de chuvas, já deram exemplos desse risco. “Vimos o rio Branco, que chega a ter 1,1 mil metros de largura, ser atravessado a pé”, contou James Serrados, presidente da Companhia de Águas e Esgoto de Roraima (Caer). “Não estava preparado para ver o que vi nos últimos três meses”, afirmou Denilson Lopes Gama, diretor de Operações da Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama), descrevendo a seca nas principais hidrovias do Alto Solimões. “No interior, diversas operações sofreram impacto, comprometendo o abastecimento em comunidades indígenas e ribeirinhas”, afirmou, indicando que a falta de acesso em várias localidades impediu o abastecimento de cloros, sulfatos e polímeros usados no tratamento de água. “Assim como remédios para o tratamento para doenças provocadas pela falta de saneamento”, completou. “Esse é um tema urgente, que também cabe a nós debater”, conclui.

Além do saneamento, as mudanças climáticas, com secas e chuvas em excesso em várias regiões do País, devem afetar a produção agrícola do próximo ano.

Leia: “Ainda não sabemos quão estrutural são os impactos do clima na produção agrícola”.

Leia a íntegra da reportagem de Solange Monteiro na edição de dezembro da revista Conjuntura Econômica.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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