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A novela do saneamento

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Ter acesso aos serviços de saneamento no Brasil, a chamada universalização, é um enorme desafio. Na semana passada, o governo sofreu uma dura derrota no Congresso, ao tentar alterar pontos do marco regulatório do saneamento, o que tornaria ainda mais complexa a busca dessa universalização. Dados do Our World in Data mostram um quadro desalentador do saneamento no país, que despencou de posição: a proporção da população que utiliza serviços de saneamento passou a ser inferior à média mundial em 2010. Estávamos na rabeira em relação ao Chile, à América Latina e Caribe e ao mundo, em 2020, último dado disponível.

Proporção da população que utiliza serviços de saneamento gerenciados de forma segura

Elaboração própria. Fonte: Our World in Data a partir de dados de WHO/UNICEF Joint Monitoring Programme (JMP) for Water Supply and Sanitation.

Joisa Dutra, diretora do Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura (FGV CERI), Luciana Costa e Romário Batista, pesquisadores do Centro se debruçam sobre o tema em artigo publicado na revista Conjuntura Econômica de maio, apontando as dificuldades em se avançar na universalização do saneamento.

Aprovado em 2020, o novo marco legal do saneamento básico estabeleceu que os serviços de água e esgoto devem estar universalizados até 2033, ao nível de atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgotos. Por meio de maior segurança jurídica e estabilidade regulatória, as mudanças visam essencialmente atrair investimentos privados, uma vez que os recursos públicos se mostraram insuficientes na promoção do acesso universal.

Com o novo governo, as coisas começaram a embaralhar, com tentativas de mudanças que, segundo analistas, trariam retrocesso ao marco legal aprovado.

Joisa, Luciana e Batista enumeram algumas ações do governo para mudar parte do marco regulatório do saneamento, com dois Decretos publicados em abril:

• O primeiro Decreto, de número 11.466, estabeleceu a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços de água e esgoto, considerados os contratos vigentes, com vistas a viabilizar o cumprimento das metas de universalização.

• O Decreto reabre prazo até 31/12/2023 (que havia se esgotado) e permite que prestadores de serviço com contratos não regulares ou precários em vigor possam se submeter a esse processo de análise. Amplia o prazo de regularização de contratos até 31/12/2025 e admite que os prestadores que não atingirem os referenciais mínimos para comprovação de capacidade econômico-financeira podem apresentar um plano de metas, visando atendê-los no período de até cinco anos.

“Essas alterações contribuem ainda para acomodar a situação dos 1.113 municípios com contratos declarados irregulares, afastando restrições de acesso a recursos federais para investimentos e dando nova oportunidade para que esses prestadores comprovem capacidade econômico-financeira”, afirmam os autores.  

O outro Decreto, de número 11.467, também de abril deste ano, trata da regulamentação quanto à prestação regional dos serviços públicos de saneamento básico, além da alocação de recursos e financiamentos por parte da União:

• O Decreto aparentemente reabilita espaços do modelo anterior em prol das companhias estaduais de saneamento básico, flexibilizando exigências de prévia licitação para a sua contratação pelo titular dos serviços – o Município – e a utilização de contratos de programa em parcerias público-privadas.

Na justificativa do governo, os novos decretos alavancariam os investimentos no saneamento. Mas não foi isso que o Congresso entendeu, reafirmando que não seriam admitidos retrocesso no marco regulatório do saneamento, notadamente em aspectos que maculassem seus pilares fundamentais.

Na derrota que o governo sofreu na Câmara dos Deputados ao tentar emplacar os Decretos que mudam a essência do que já havia sido aprovado, o Relator defendeu que “há dois decretos não só regulamentando dispositivos constantes na Lei, mas também alterando ou extrapolando normas e princípios postulados pela Lei que criou a norma”. Além de observar “um claro lapso referente ao instrumento utilizado para obter a regulamentação pretendida”, destaca, como pontos que “definitivamente não podemos concordar”, à luz dos pilares estruturados pelo novo Marco Legal do Saneamento – metas de universalização até 2033 e estímulo à concorrência das empresas.

Joisa, Luciana e Batista enfatizam que “as mudanças propostas, ainda que não versem sobre todos os pontos controversos dos Decretos, mostram a disposição do Legislativo de impedir que prestadores sem comprovada capacidade econômico-financeira continuem operando, e que a concessão dos serviços públicos de saneamento básico não seja precedida de processo competitivo”.

 

O texto completo do artigo por ser visto na edição de maio da revista Conjuntura Econômica, que estará circulando na semana que vem.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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