“É cada vez mais importante que o acesso de qualidade à internet faça parte dos direitos básicos”

Renato Meireles, presidente do Instituto Locomotiva, co-fundador do DataFavela

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Quais mudanças de comportamento considera que a pandemia deixará entre as classes média e baixa?

Um elemento novo é a preocupação com a saúde dentro do ambiente de compra. Fizemos uma pesquisa no final do ano sobre as compras de Natal em que pela primeira vez um fator apareceu na frente de preço, e eram lojas desinfetadas. Essa preocupação – de saber se tem um PVC separando o caixa do consumidor, quantas vezes por dia aquela loja sofre algum tipo de processo de limpeza, se tem termômetro medição de temperatura –, diferentemente do que o senso comum possa indicar, é maior entre as classes mais baixas, que têm menos acesso a um convênio médico, e em geral não tem possibilidade de home office – que, aliás, serviu como novo indicador social de privilégio.

Há outros fatores que são uma aceleração de processos que já existiam, e entre eles está a grande demanda por compras online, que cresceu numa velocidade grande por força das circunstâncias. Nas empresas, o vírus levou a uma junção entre o CFO, o presidente e o responsável por compliance que não existia. Especialmente no varejo, que é caixa, ou você resolvia o problema de caixa e aumentava as vendas, ou as empresas iriam quebrar.

Isso também se verificou nas classes mais baixas?

O aumento foi proporcionalmente maior nestas, por partirem de uma base menor. E acontece porque esse grupo passou a trabalhar com meio digital de uma forma que não trabalhava antes. Fizemos uma pesquisa no início da pandemia que apontou que 18 milhões de brasileiros recebiam algum dinheiro via aplicativo. Em dezembro, esse número subiu para 21,5 milhões. Ou seja, durante a pandemia, aumentou em 3,5 milhões o número de pessoas que ganhavam alguma renda por aplicativo. Sejam trabalhadores autônomos, mas também pequenos negócios que tiveram que ir para plataformas para não fecharem: restaurantes que passaram a vender por aplicativos como Ifood, pequenos fabricantes de bonés, camisetas e brindes que passaram a vender pelo Mercado Livre, ou trabalhadores autônomos que se cadastraram em um aplicativo como o GetNinjas e passaram a oferecer seus serviços através de plataformas, e a receber por meio eletrônico. As plataformas ajudaram a mudar a relação do brasileiro com o dinheiro – portanto, com o comércio também.  Fora o crescimento de transferências do governo pagas por moedas digitais. Isso se deu no auxílio emergencial, nos vouchers de merenda distribuídos por estados, além e doações privadas feitas por meios eletrônicos de pagamento.

Estudo do Instituto Locomotiva para o jornal O Estado de S. Paulo apontou que em 2020 a pandemia deve ter tirado R$ 247 bilhões do consumo de bens e serviços da classe média brasileira – entendida como pessoas de renda média per capita entre R$ 667 a R$ 3.755. Quais os segmentos de mercado mais afetados, e quais as mudanças de comportamento de consumo se espera de forma mais persistente?

Em primeiro lugar, a tendência é de uma radicalização cada vez maior da relação custo-benefício. As marcas terão de fato que justificar um eventual sobrepreço de seus produtos em relação aos concorrentes.  No caso dos segmentos mais afetados, temos que levar em conta algumas questões. A primeira, é que a inflação observada nos últimos meses afetou muito mais o orçamento das famílias mais pobres, por estar concentrada em alimentos. E se esse grupo tem que gastar mais dinheiro com alimentos, sobrará menos para o consumo de serviços de beleza e turismo, por exemplo.

Os serviços de educação também passam a ser afetados, pois quando as escolas estão fechadas, o sacrifício financeiro da classe C vai perdendo força. Os critérios de busca por mais segurança, ou de garantir um ensino de mais qualidade, que permita ao filho passar de ano, vão se enfraquecendo.  No caso da pandemia, entretanto, o ensino público também foi impactado, com a junção perversa de professores que não querem voltar a dar aula, governo que não quer correr o risco de abrir as escolas e não ter professores para dar aula, e pais com medo dos filhos voltarem, por mais que estes estejam efetivamente sofrendo impacto em sua sociabilidade, em seu desenvolvimento. Além da falta de infraestrutura. Fizemos um estudo que mostrou que, nas favelas, 50% dos estudantes pararam de estudar porque não conseguiram acompanhar as aulas online, por falta de aparelho ou internet de qualidade. Imagine escrever uma redação com o polegar no celular. Tem casos de estados que buscaram outros canais, como aulas pela TV. Mas o aprendizado é troca. Como tirar dúvidas, conversar?

Como avalia o impacto do fim do auxílio emergencial?

É preocupante. A lógica da cigarra e da formiga não pode ser aplicada na baixa renda, não porque esta seja perdulária, mas porque não sobra para guardar. No início da pandemia, 8 de cada 10 brasileiros das classes C, D e E não tinham dinheiro guardado para segurar sequer um mês completo de isolamento. O auxílio, junto ao processo de doação das empresas privadas – cujo montante poderá ser estimado após a consolidação do imposto de renda dessas empresas –  foi fundamental para evitar uma convulsão social no Brasil. Óbvio que o apoio do governo foi muito maior, mas demorou para chegar. Enquanto o governo estava no dilema de identificar seus 30 milhões de “invisíveis”, a Central Única das Favelas (Cufa) fazia reconhecimento com biometria facial para doações a mães em comunidades. Organizações como o Instituto Península (fundado pela família Diniz) e a Fundação Tide Setúbal (nome da mulher do banqueiro e industrial Olavo Setubal) estavam fazendo chegar doação de alimentos e de dinheiro diretamente para essas comunidades, em parceria com ONGs. E as soluções em dinheiro foram eficientes, porque movimentaram o comércio dentro das próprias comunidades.

Se agora se espera uma retomada através da poupança acumulada no ano passado, não será de poupança dos mais pobres. Estamos falando dos mais ricos, e não é a eles que se destina o auxílio. O país precisa equacionar sua política social, seja com a ampliação do Bolsa Família, seja com a criação de uma renda básica, por que está entre os países mais desiguais do mundo e essa é a realidade. Mas acho que o auxílio emergencial ainda voltará, pois é a moeda que a classe política entende, que é a da perspectiva de poder. Não existe chance de o presidente Bolsonaro ser reeleito sem uma ampliação dos programas de transferência.

Do ponto de vista da população, quais medidas considera imprescindíveis para ampará-la e prepara-la para uma recuperação econômica?

Acho que a medida mais emergencial é, além da garantia de uma renda básica, ter um processo de incentivo claro ao empreendedorismo, colocando as novas tecnologias a serviço das pessoas mais pobres. Isso passa, por exemplo, pelo acesso universal à internet. É cada vez mais importante que o acesso de qualidade à internet faça parte dos direitos básicos previstos na Constituição, como são os direitos a moradia, educação e saúde. Veja, no começo da distribuição do auxílio emergencial, havia 5,44 milhões de pessoas elegíveis ao benefício que não tinham conta em banco nem acesso à internet. E foi a internet que garantiu que muitos pequenos negócios não quebrassem. Os estudantes que conseguiram perseverar nos estudos o fizeram porque tinham melhor acesso à internet. Isso é uma etapa zero. Assim como um microcrédito que efetivamente chegue nas camadas mais pobres.

Quando vamos olhar do ponto de vista estratégico, também temos o desafio de fazer com que esse período da pandemia não aumente o gap educacional entre mais ricos e mais pobres. Então, a volta às aulas nunca foi tão importante para os mais pobres. Isso significa que os profissionais de saúde deveriam estar no grupo prioritário de vacinação, juntamente com os profissionais de saúde. Escola é fundamental para não sairmos dessa crise sanitária gerando uma mão de obra mais prejudicada, com menos acesso a oportunidades.

Qual o futuro ideal para o Bolsa Família?

O Bolsa Família não é apenas uma política de redução da pobreza. Ele também é uma garantia de que toda criança estará dentro da escola. É impossível pensar em crescimento sustentável da economia brasileira sem que isso aconteça. O Bolsa Família precisa ser ampliado, mas também é fundamental que mantenha essa contrapartida, pois educação não é só um direito, é um dever do Estado e dos pais. A garantia disso é essencial, para quem de fato busca aumento de produtividade, para que daqui alguns anos não tenhamos que lembrar às pessoas por que é importante tomar vacina. Temos visto uma fuga da verdade factual, e para que isso não se repita precisamos de educação de qualidade. E, nesse sentido, o Bolsa Família é a mecânica mais eficiente para garantir que toda criança esteja dentro da escola estudando, e não nas ruas pedindo dinheiro.

O que acha que deve ser feito para que novas oportunidades de trabalho relacionadas à digitalização da economia não derivem em maior deterioração do trabalho e da renda?

Essa é a pergunta do milhão, mas é um debate necessário. A tecnologia é um meio que se permite otimizar trabalho e ampliar fontes de renda. Se comparo os novos modelos de digitalização do mercado de trabalho com as garantias do mercado formal, sem dúvida encontrarei aí uma concentração da precarização do emprego. Mas se o norte de comparação são as pessoas que não estavam sendo absorvidas pelo emprego formal, ou que mesmo tendo emprego formal não conseguiam renda suficiente para cobrir suas necessidades e vão procurar uma atividade por aplicativo – seja de entrega, motorista, ou da pessoa que começou a vender produtos ou serviços via marketplaces, aplicativos –, acho que estaríamos pior na ausência dessas formas de trabalho. Lembre-se que são 21,5 milhões que recebem alguma renda por aplicativo. E a maior parte dessas pessoas recebe pelo menos metade de sua renda por aplicativo.

Se você me pergunta se acho eticamente justo que grandes empresas de aplicativo aumentem seus lucros a partir do desemprego da população brasileira, eu lhe responderei que não. Mas se me perguntar se é eticamente justo que, por uma pretensa defesa do mercado formal, os brasileiros não tenham alternativa, também direi que não é. Nesse sentido, o que se tem que buscar é uma regulação que garanta políticas de remuneração adequadas. Que o contratante não possa mudar o valor pago pela entrega de acordo a sua conveniência, nem criar modelos de punição como redução da remuneração caso não se obedeça um tempo mínimo de disponibilidade. É necessário que se criem seguros para garantir uma proteção a esse trabalhador em casos de gravidez, acidentes, por exemplo. Mas achar que o modelo de CLT da era Vargas vale para essa nova economia é viver no mundo da fantasia. E é tão errado quanto as empresas se aproveitarem do desemprego e da necessidade de sobrevivência das pessoas fazendo qualquer oferta pelo trabalho.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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