“Desempenho da ultradireita em países sul-americanos reflete frustração da sociedade”

Paulo Velasco, cientista político, professor adjunto de Política Internacional da Uerj

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Como interpretar o desempenho de candidatos de extrema direita em países sul-americanos como Javier Milei na Argentina - do partido Avanza Libertad, que se elegeu deputado com vistas às eleições presidenciais de 2023 - e de José Antonio Kast, no Chile, do Partido Republicano, que saiu na frente no primeiro turno das eleições presidenciais realizadas no último domingo?  
De certa forma, a América do Sul demorou a se deixar levar por uma onda populista de ultradireita que vimos emergir em outras regiões. Ainda que se trate de realidades distintas, sociedades e culturas diferentes - que em certos casos em pouco convergem -, esse é um pensamento que ganhou força há alguns anos, muitas vezes conduzido por um instrumental populista, que é justamente a retórica que sensibiliza a sociedade e leva ao êxito de várias plataformas, por mais estranhas que sejam. 

Nesse sentido, agora passamos a ver a  emergência de discursos que não se limitam a uma agenda econômica mais à direita, pois isso sempre existiu, e incluem ideias conservadoras ligadas a costumes, com pinceladas de matiz religioso. Algo que não aparecia tão claramente na região como se já se via na América do Norte, com Donald Trump, e sobretudo na Europa, sob um contexto de certo desencanto pela política e os políticos mais tradicionais.

Em que medida o desempenho do presidente Bolsonaro influencia nesse movimento?
Esse fenômeno vem de antes de 2018, mas Bolsonaro foi a porta de entrada para sua concretização no espaço sul-americano. Claro que outros candidatos já tinham surgido com bandeiras semelhantes, querendo pegar carona no fenômeno Trump desde 2016, quando este foi eleito presidente dos Estados Unidos. Mas eles não tinham viabilidade política - apesar de que essa também era a avaliação que se tinha de Bolsonaro antes da campanha começar. Nesses casos, entretanto, realmente não houve o risco concreto de se ter uma ultradireita no poder. Mas não considero que Bolsonaro seja o catalisador desse processo na região. Há até quem diga “sou bolsonarochileno”, o próprio Milei tem uma agenda convergente com Bolsonaro, chegando a se encontrar com um de seus filhos. Mas isso não significa que esses políticos se mirem nele. O que vemos é um processo importado de outras regiões, se aproveitando de uma insatisfação popular que, diga-se de passagem, é uma sensação global.

Há poucos meses, o Chile surpreendia com a escolha de uma assembleia constituinte que, apesar de condenar partidos políticos tradicionais com a significativa eleição de representantes independentes, refletiu o apoio a pautas sociais que não são da agenda da direita.  Como se pode explicar que agora um candidato com valores diametralmente opostos esteja liderando a corrida eleitoral?
Uma assembleia constituinte liderada por uma mulher indígena - e me lembro de ter pontuado isso em minhas análises sobre o processo constituinte chileno - poderia se tornar a marca da retomada de uma perspectiva política menos sombria na região. Mas isso agora se desfez como um castelo de areia, especialmente porque parte desses eleitores parece não ter ido votar para presidente. O resultado de Kast (27,91% dos votos válidos, seguido dos 25,83% de Gabriel Boric, deputado de 35 anos, da Convergencia Social) veio de uma participação eleitoral baixa (47,7% dos eleitores foram às urnas, contra 50,9% de participação registrado no plebiscito sobre a instalação de uma assembleia constituinte, em outubro de 2020). 

Veja, o movimento a favor de uma nova Constituição esteve diretamente ligado à ocupação das ruas que vimos no segundo semestre de 2019, em um Chile conflagrado, e que também se caracterizou por certa lógica apolítica. Algo parecido com o que vimos no Brasil nas jornadas de junho de 2013. Esse repúdio às bandeiras tradicionais, especialmente as de centro-direita, representada naquele momento pelo presidente Sebastián Piñera, acabou levando à configuração de uma constituinte interessante e que foi muito celebrada. O fato da participação eleitoral ter sido baixa agora, e de um candidato do perfil de Kast estar em vantagem, é mais um reflexo da exaustão de uma sociedade sul-americana frustrada, impactada pela pandemia, e desapontada com promessas vazias que nunca se realizam - seja à direita, seja à esquerda  - e que acabam optando nomes à margem da política, ou antissistema, ou por novidades como a bandeira de ultradireita. A direita tradicional chilena claramente não faria sucesso, dado o caos dos últimos anos sob a gestão de Piñera (que recentemente também escapou de um processo de impeachment, depois de informações que o envolviam em irregularidades na venda de um projeto de mineração, reveladas pelo Panamá Papers). Em compensação, deu lugar a um movimento ainda mais radical à direita, que em parte também é uma resposta a bandeiras progressistas que levaram à formação da Assembleia Constituinte. 

Agora será preciso ver se, para o segundo turno (marcado para 19 de dezembro), Boric consegue manter a coalizão de centro-esquerda (Concertación) a seu lado, conquistar parte do centro e, de alguma forma, resgatar esses eleitores ausentes. Talvez essas pessoas que não foram votar não tenham se sentido estimuladas pela agenda do candidato, e o espaço de tempo é curto. 

E o resultado das eleições legislativas na Argentina? Milei também parece se distanciar significativamente da direita representada pelo ex-presidente Mauricio Macri...
Em geral, os governos democráticos na América Latina obedecem a um movimento pendular tradicional, às vezes frenético, de transição de poder. Ou seja, elejo um candidato que se coloca como salvador da pátria, que fatalmente vai me frustrar,  e daqui quatro ou cinco anos escolherei outro. Então, até o movimento Cristina Kirchner - Mauricio Macri - Alberto Fernández, nada foi especialmente surpreendente. Agora, o que efetivamente causa preocupação, é a emergência de Javier Milei como fenômeno político. Até então, a Argentina era uma país que não tinha se deixado levar pelo canto da sereia da ultradireita, pela retórica bem particular desse personagem político que consegue ganhar dividendos com o fato de ser diferente, com a ideia de que não se confunde com aqueles que sempre levaram a Argentina à permanente frustração, não importa se na órbita política do peronismo ou do antiperonismo. Porque Macri é o antiperonismo típico tradicional, que sempre houve na Argentina, e que faz parte de sua coalizão, com a Unión Cívica Radical. E o peronismo, por sua vez, comporta várias bandeiras político-partidárias, dentro de uma chave conceitual que é híbrida e tolerante com diferenças. Milei tira proveito da frustração e se aproveita do caos econômico da Argentina. Se o país tivesse conseguido vislumbrar, ainda que de forma distante, uma luz no fim do túnel, certamente estaria menos sujeito aos discursos do agora eleito deputado. 

Nessas eleições, realmente surpreende o encolhimento do peronismo no Senado. Não é algo inédito, mas é raro pois como mencionei, o peronismo se caracteriza por sua tolerância com grupos variados, tem de tudo ali. E mesmo assim os eleitores mostraram não querer mais comprar essa ideia. Fernandez tem um panorama difícil, pois apesar de algumas concessões que têm dado à sociedade na tentativa de estimular uma retomada do crescimento via consumo, falta confiança. A Argentina é um país frustrado, essa é a realidade política permanente. Mas até aqui essa frustração significava oscilar entre radicalismo e peronismo. Agora surgiu uma figura à margem disso que já vem como nome forte para as presidenciais, com entrada chancelada no parlamento para usá-lo de trampolim para chegar na Casa Rosada. 

Como tendência global, como avalia a sustentação dessa corrente de ultradireita?
Ainda é cedo para falar sobre o futuro do trumpismo; na Europa, ainda é uma ameaça. As eleições na Alemanha permitiram algum respiro, com o encolhimento do AfD (Alternativa para a Alemanha). Foi um bom sinal. Mas em 2019 - somente há dois anos, ainda que antes da pandemia -, ainda houve uma perda importante de participação da centro-esquerda e centro-direita na formação do parlamento europeu, com avanço dos verdes liberais e a extrema direita. No Leste Europeu, onde há maior preocupação com temas como migração, refugiados, ainda é forte a presença da ultradireita, e não podemos fechar os olhos para a realidade da Hungria, Polônia, que estão no coração da União Europeia. É preciso esperar como virão as eleições na França, no próximo ano. A Reunião Nacional perdeu espaço nas eleições municipais, mas na França nem sempre essa votação é bom termômetro para a presidencial. 

Em linhas gerais, ainda é cedo para se bater o martelo de que os ultradireitistas são forças em declínio na Europa. Ainda que vejamos uma reação, parcela significativa da sociedade europeia ainda se deixa seduzir por discursos desse calibre. Até porque a frustração com as agendas tradicionais ainda continua. Agora, porém, o cenário  de contenção da pandemia é acompanhado de um caminhão de recursos, aprovados pela Comissão Europeia, e isso pode fazer com que as frustrações se reduzam um pouco. A não ser que surja uma crise significativa, como foi a migratória de refugiados em meados da década passada. Mas a tendência é de que, se a situação econômica melhorar, os extremismos fiquem mais ou menos neutralizados. 

Leia também: “Na América Latina, percepção de falta de clareza sobre a política econômica para a retomada afeta as expectativas”

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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