Desafios para reduzir a sub-representação feminina nas ocupações em ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

O primeiro ano da paulistana Lorene Amore, 18, como universitária foi bem diferente do que ela imaginava. Devido à pandemia, a interação com professores e colegas de classe ficou na maior parte do tempo limitada à tela do computador, e a expectativa de frequentar os laboratórios do campus teve que ser postergada. Nada parecido com os desafios para os quais ela vinha se preparando desde que decidiu estudar Engenharia Aeroespacial. “Como muitas crianças, sonhei em ser astronauta. A curiosidade sobre como chegar ao espaço me fez pesquisar, fui entendendo quais as possibilidades de trabalho nessa área, e essa vontade foi se reforçando, junto com o interesse por matemática. Na hora de prestar o Enem, não houve plano B”, conta Lorena, lembrando da dedicação aos estudos para passar em uma universidade federal – no caso, a UFABC, uma das seis brasileiras a ofertar esse curso, além do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Seu desejo é trabalhar na área de design, no projeto e construção de foguetes, satélites.  “Sei da dificuldade de marcar espaço e ser respeitada, de lidar com o estereótipo de que mulher não é capaz. Mas é preciso correr atrás e educar as pessoas do contrário”, afirma.

Lorena faz parte de um seleto grupo de estudantes que rompem a predominância masculina, no Brasil e no mundo, no grupo de carreiras ligadas a ciência, tecnologia, engenharia e matemática – conhecido como STEM, na sigla inglês.  E que tem chamado a atenção de um grupo cada vez maior de especialistas de mercado de trabalho, que vêem os avanços tecnológicos chegando à estrutura produtiva  e os riscos implícitos nesse movimento, de ampliar a desigualdade já presente entre trabalhadores quando observados por gênero, raça e renda. Ana Moura, professora do Instituto Superior Técnico de Lisboa, parceira do projeto Igualdade STEM, da Coppe/UFRJ, destaca que essa tendência tem se acentuado, conforme o avanço da digitalização. “Se observar o caso dos Estados Unidos, por exemplo, no início da década de 1980, quando as ciências de computação começaram a despontar entre as carreiras universitárias, as mulheres representavam 37% dos estudantes; hoje, está em torno de 22%”, compara.

No Brasil, as disparidades seguem o mesmo caminho. No curso de Lorena, na UFABC, por exemplo, são 75 mulheres para 364 homens matriculados, ou 20%. Levantamento do Igualdade STEM com dados do Censo da Educação Superior de 2018, do Inep, apontam que as mulheres eram maioria tanto no agregado dos estudantes cursando ensino superior (56%) quanto nos cursos não STEM, com 63% de participação. Nos cursos STEM, entretanto, representavam 30% do total, contra 70% dos homens. De 246 ocupações STEM identificadas pelos pesquisadores, apenas 39 têm maioria feminina – entre elas, biologia e engenharia de alimentos. “Ainda é mais comum ver mulheres que optam por algum ramo da engenharia preferir aqueles relacionados a algum tipo de cuidado, como a engenharia ambiental”, afirma Ana, que em seus 28 anos como professora de física e matemática em cursos de informática viu várias estudantes mudar de carreira. “Ainda que nas aulas se tenha o cuidado de usar referências de homens e mulheres, é fato que a construção do discurso ainda seja predominantemente masculina. Isso influencia o modo de interação na sala de aula, e muitas vezes afasta as mulheres”, diz.

Estudantes STEM no Brasil
cursos selecionados


Fonte: Censo da Educação Superior 2018.

Ana faz parte do projeto Fostwom, financiado pela União Europeia, que reúne instituições de ensino de Portugal, França, Itália, Espanha e Suécia com o objetivo de desenvolver conteúdos e ferramentas para o desenvolvimento de cursos online massivos (MOOCs) com equilíbrio de gênero. O site do Fostowm, inclusive, conta com um guia de boas práticas (toolkit) para designers de cursos preocupados com a questão de gênero. A professora destaca que a importância de se proporcionar uma distribuição mais equânime de profissionais nessa área transcende o debate sobre mercado de trabalho. “Hoje a informática influencia a vida de toda a sociedade. Uma maior diversidade entre profissionais que responsáveis pelos algoritmos de modelos de previsão, classificação – que hoje em sua maioria são feitos por homens, em torno de 25 anos, brancos, empregados em grandes empresas – também é parte da construção de uma sociedade mais diversa”, diz.

O reflexo dessa concentração no mercado de trabalho também é claro. Levantamento co-coordenado pela pesquisadora associada do FGV IBRE Laísa Rachter, apresentado na matéria de capa da Conjuntura Econômica de novembro mostra que as mulheres representam 26% dos trabalhadores formais em STEM no Brasil. “É uma participação similar à observada nos estados Unidos. Mas aqui é agravada pelo percentual de trabalhadores em STEM já ser muito baixo, 2,8%, metade do observado nos Estados Unidos”, diz Laísa, o que acentua essa subrepresentação. E que também está relacionada às chances de se conquistar melhores vagas e melhores salários, ressalta Laísa, lembrando que o salário médio nas ocupações STEM são mais que o dobro do observado nas Não STEM.

Participação das mulheres em ocupações selecionadas, % do total, pré-pandemia


Fonte: Global Gender Gap Report 2020 WEF.

Na medida em que o mercado de trabalho vai se tornando mais digital, o desafio de inclusão das mulheres em ocupações STEM também inclui aquelas que não tiveram acesso ao ensino superior. “É necessário o envolvimento de diversos setores da sociedade, pois estamos falando de uma mudança bastante significativa”, diz Regina Acher, cofundadora da Laboratória Brasil, organização social preocupada na capacitação de mulheres para inserção no mercado de trabalho em ocupações mais tecnológicas, colaborando para uma economia “mais diversa, inclusiva e competitiva”, completa. O bootcamp (treinamento intensivo) promovido pela Laboratória tem duração de 6 meses, dos quais as inscritas saem preparadas para desenvolver as funções de uma programadora front-end júnior. “No bootcamp, as mulheres não só aprendem os aspectos técnicos de programação (JavaScript), como também desenvolvem habilidades socioemocionais e, dessa maneira, saem preparadas para o mercado de trabalho”, descreve Regina. Os pré-requisitos para participar são apresentar-se e identificar-se como mulher, ser maior de idade, ter cursado o ensino médio em escola pública ou particular com bolsa integral por critério de renda e disponibilidade para frequentar o curso 5x por semana. Presente em outros quatro países latino-americanos – Peru, México, Chile e Colômbia –, no Brasil a Laboratória formou até agora mais de 250 mulheres em seis turmas. A última edição do bootcamp contou com alunas de 12 estados, das quais 46% tinham ensino médio completo ou superior incompleto, 40% eram negras e 16%, mães. “Temos conseguido manter o mesmo índice de empregabilidade em todas as edições, de mais de 90%”, conta Regina. “No final do curso, as alunas participam de um hackathon, onde trabalham em grupos para resolver desafios propostos pelas empresas e, na ocasião, muitas já saem empregadas.” 

Regina conta que muitas das 70 empresas contratantes de alunas da Laboratória, que vão de bancos a startups, são parceiras da organização e participam do debate de pautas de inclusão, diversidade e novas possibilidades de treinamento. A ideia, reforça, é desenvolver o papel essencial que cada ator – empresas, governo, comunidade – têm nesse trabalho de redução da desigualdade de gênero no cenário tech. “Toda vez que formamos uma mulher, ela se torna um exemplo para muitas outras, que passam a saber que é possível, sim, trabalhar com tecnologia, desde que haja esforço e dedicação”, afirma. “Junto com a nossa rede alumnae, nossa visão é impulsionar uma comunidade maior de mulheres na tecnologia, onde elas possam compartilhar suas experiências e também inspirar outras mulheres.”

Salário-hora médio por gênero e tipo de trabalho (2019), em R$


Fonte: Pesquisadores FGV EPGE / UFRJ com dados da Rais.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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