Decisão do Supremo sobre renda básica e projeto da Lei de Responsabilidade Social na pauta do Senado pressionam por debate de como ampliar proteção, dizem pesquisadores em webinar

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Em agosto do ano passado, quando se encerrava a primeira fase de benefícios do auxílio emergencial, a discussão sobre como apoiar a população de baixa renda afetada pelos efeitos da pandemia se dividia em duas: a definição sobre uma extensão do auxílio, que acabou acontecendo, em menor valor e com alguma correção no número de beneficiários; e a reformulação das políticas sociais para a criação de um novo Bolsa Família, mais robusto para atender ao aumento da demanda por transferência de renda no pós-pandemia, que não vingou.

Este ano, com o impacto da crise sanitária patente nas estatísticas - aumento de 9 milhões de pessoas na extrema pobreza, de acordo a levantamento do FGV Social com dados da PNAD Contínua, totalizando 16% da população brasileira, contra 11% em 2019 -, uma nova rodada de auxílio chegou em abril, por fora do orçamento. Mas nenhuma sinalização foi dada quanto a medidas permanentes para amparar não apenas esse grupo como o contingente de trabalhadores informais cuja condição de geração de renda se tornou mais vulnerável. 

Duas iniciativas recentes, entretanto, colocaram a demanda social de volta ao debate. A primeira veio do STF, com a decisão unânime dos ministros que obriga o Executivo definir critérios para a implementação, até o fim do ano, da lei da Renda Básica de Cidadania, aprovada em 2004, mas carente de regulamentação para entrada em vigor. A segunda foi a colocação na pauta do Senado do projeto de lei 5343/2020, apresentado em dezembro pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que substitui o Bolsa Família pela Lei de Responsabilidade Social.

“É uma pressão importante para fazer esse debate acontecer”, afirmou Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, no seminário As Políticas Públicas Frente à Pandemia, promovido pelo FGV IBRE em parceria com O Estado de S. Paulo, com moderação de Adriana Fernandes, repórter especial e colunista do jornal. “Se tem algo em comum nas análises é que a desigualdade, a pobreza, a informalidade e o desemprego estão aumentando, e já devíamos ter avançado nessa discussão”, afirmou. 

Apesar da urgência do tema, os pesquisadores participantes do webinar demonstraram preocupação com o ambiente para debate e aprovação de reformas do arcabouço de políticas sociais. “É difícil ser otimista quanto a uma direção construtiva com base no que vimos no processo orçamentário deste ano, disfuncional, em que sequer conseguimos aprovar recursos para a realização do censo demográfico e os problemas sociais foram desconsiderados”, disse Fernando Veloso, pesquisador do FGV IBRE, coautor do Observatório da Produtividade Regis Bonelli. Pires, que coordena o Observatório de Política Fiscal do FGV IBRE,  lembra que todas as discussões sobre o arcabouço de políticas de proteção social são intensivas em orçamento, “e este  nunca esteve tão distante das demandas sociais”, diz.  “Hoje há basicamente três orçamentos em disputa: o antigo, que obedece às regras da Previdência, do funcionalismo, que não investe, flertando com o shutdown da máquina pública anos após ano; o da pandemia; e o do governo, que destina recurso para militares, apoio político, emendas do relator. É um conflito grande, diante da necessidade de se fazer uma discussão racional sobre o pós-pandemia, com tempo para  estruturar programas.” 

A preocupação de Luis Henrique Paiva, coordenador de estudos em seguridade social do IPEA, é de que a direção das reformas orquestradas seja pelo governo federal, seja pelo Congresso, busque ganhos de eficiência onde a ampla literatura que avalia o Bolsa Família (BF) já mostrou que não há. “O programa é bem focalizado, e essa focalização melhorou com o tempo. É preciso afastar a consideração, por exemplo, de que é possível ser significativamente mais eficiente com mudanças administrativas. Tampouco, que um aumento orçamentário de R$ 35 bilhões para R$ 58 bilhões - que seria um orçamento fiscalmente neutro, fruto de remanejamento de recursos - traria um impacto muito maior. Aumento de recursos na margem traz melhorias na margem”, afirma. Para Paiva, ampliar a responsabilidade social do programa passaria antes de tudo por proteger os benefícios do BF contra a inflação, definindo critérios de reajuste e periodicidade em lei; reajustar as linhas de elegibilidade que são monetárias, pela inflação, definindo índice e periodicidade também em lei, e acabar com as filas de espera para adesão ao Bolsa Família. “Em 2018, gastamos 15,4% do PIB em transferências previdenciárias, assistenciais, e em políticas como o seguro desemprego. Desses, o Bolsa Família representou 0,4%, e é o único que tem que limitar os beneficiários conforme o orçamento existente. Ou seja, apenas no 0,4% do PIB voltado aos mais pobres é que temos que nos sujeitar a restrições fiscais”, critica. 

Em estudo divulgado hoje (21/5), do qual é coautor, Paiva também questiona a lei da renda básica como o destino de uma política estrutural. Ainda que o voto do STF tenha reforçado que a Renda Básica de Cidadania deveria ser implementada em etapas, começando pelos mais vulneráveis, e respeitando a responsabilidade social, o texto aponta que, para fazer efeito, desenhos universais de política demandam gastos altos - dando preferência para modelos de política do tipo focalizado ou híbrido. Uma das alternativas apresentadas por Paiva é a de manutenção da base operacional do Bolsa Família e do Cadastro Único, acrescentada de um benefício universal focado nas crianças. “A pobreza entre crianças e jovens é o dobro da taxa média de pobreza no Brasil, e dez vezes maior do que a taxa de pobreza entre idosos. Com tal concentração, uma renda universal focada em crianças e jovens até 18 anos seria o segundo programa mais bem-focalizado do Brasil, perdendo apenas para o Bolsa Família”, diz. No estudo, os pesquisadores do Ipea ainda traçam cenários de financiamento para ampliação do gasto com políticas de transferência de renda, para R$ 120 bilhões e R$ 180 bilhões ao ano, com base em recursos do IBS - imposto previsto na PEC 45 de reforma tributária que unifica cinco tributos indiretos das três esferas de governo - além de uma reformulação do imposto à renda incluindo aumento de alíquota e cobrança na distribuição de lucros e dividendos, com compensação no imposto pessoa jurídica. 

No caso do projeto da Lei de Responsabilidade Social, Veloso -  coautor de proposta apresentada pelo Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), que serviu de base para sua elaboração - aponta que a ideia é aprimorar a rede de proteção social remanejando recursos de outros programas, visando ao equilíbrio das contas públicas. O projeto prevê a criação de três benefícios: o Benefício da Renda Mínima, que unifica os quatro benefícios atuais do Bolsa Família; a Poupança Seguro Família, formada por um depósito mensal de 15% do rendimento do trabalho do beneficiário, sujeito a teto, que pode ser sacado em situações específicas de queda de renda; e a Poupança Mais Educação, que se refere a uma poupança de R$ 20 mensais depositada para crianças do ensino fundamental e médio de famílias beneficiárias do programa, e que seria sacada no momento destas concluírem o ensino médio. “Para essa medida, nos inspiramos em um programa carioca bem avaliado visando à não-evasão do ensino médio, que é um dos maiores problemas educacionais do país”, diz. 

No evento, Pires ressaltou a importância de se pensar na sustentação de um sistema previdenciário frente à fragilização do vínculo empregatício e flexibilização das formas de trabalho, que tendem a aumentar. “Historicamente, sempre tivemos facilidade em estruturar políticas para os trabalhadores formais, como o seguro desemprego, o abono, e a própria previdência. Mas hoje o desafio, no mundo inteiro, é de como lidar com uma base de financiamento que está ruindo”, diz. Pires indica que ainda não há iniciativas bem-sucedidas de contribuição voluntária de jovens  para a previdência pública. “Para eles, essa é uma questão distante. E, quando começam a se preocupar, não conseguem acumular poupança suficiente para se manter.” Para o pesquisador, uma das alternativas que tem surgido é, tal como no caso das crianças, defendido por Paiva, criar-se um nicho que renda básica, de um benefício não-contributivo. “Não se abdicaria de contribuição sobre folha que apesar de ser reduzida, é base uma estável, mas esta seria complementada com outras fontes, como imposto sobre renda”, diz. Pires ressalta que a construção de programas como esse envolve a preocupação de não errar muito, para não gerar uma crise fiscal futura, ou um colapso na cobertura, com a previdência deixando de cumprir seu papel. 

Outro ponto ressaltado por Pires é a necessidade de que programas de proteção devem ser acompanhados de políticas de capacitação e inclusão produtiva, especialmente em  um cenário de aumento de informalidade. O qual, afirma,  é acrescido da demanda por formação em tecnologias da informação, citando estudo sobre prêmios salariais relacionados à conectividade de trabalhadores. “Historicamente, fazemos isso mal. Quando se observa a aplicação de recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), menos de 1% dos recursos é destinado a esse tipo de ação. Em 2019 foram R$ 23 milhões. Não dá para nada, e o sistema não funciona bem”, diz, ilustrando o mergulho no dilema: não funciona porque não se investe, ou não se investe porque é ruim. “Precisamos achar espaço fiscal e construir capacidade pública estatal para fazer qualificação e intermediação de mão de obra com um sistema no qual as empresas confiem.” 

No evento, os pesquisadores defenderam que, apesar do cenário não ser o mais virtuoso para ajustes, é importante não abandonar o debate. “De certa forma, o auxílio emergencial, ainda que insustentável no longo prazo, estendeu a fronteira do possível, nos empurrou para pensar o que poderia ser feito além do Bolsa Família, e mais além do que achávamos que fosse possível”, diz Paiva, defendendo que não se desperdice essa oportunidade aberta no campo político. “Também existe uma onda externa que colabora para isso, abrindo o debate no campo tributário - por um lado, para combater o aumento da desigualdade e, por outro, devido à preocupação de governos em equilibrar suas dívidas geradas com a pandemia. Com isso, politicamente e tecnicamente, passamos a criar um ambiente diferente para tratar desse assunto.”

Reveja o webinar As Políticas Públicas Frente à Pandemia

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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