Ampliar a carga tributária sem melhorar a eficiência do sistema pode não ajudar no combate à desigualdade

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

No final de 2020, uma equipe escalada pela Oxfam Brasil e pelo Instituto Datafolha entrevistou pessoas em 130 municípios brasileiros sobre sua percepção quanto à desigualdade no Brasil. Os resultados, divulgados em maio, apontaram que a maioria (56%) declarou ser favorável a um aumento de impostos para financiar programas sociais. Ainda que a pergunta não indicasse como e de quanto seria esse aumento, e que a adesão à ideia tenha sido menor conforme maior a renda do entrevistado, foi a primeira vez desde 2017 – quando foi realizada a primeira edição de “Nós e as desigualdades” –, que na média geral esse apoio superou a metade dos consultados.

Apoio ao aumento de impostos em geral para financiar políticas sociais


Fonte: Oxfam/Datafolha.

“Levando em conta o aumento da desigualdade, este pode ser um indicativo de que a população está mais consciente da necessidade de políticas sociais, e de que estas precisam ser financiadas”, diz Jefferson Nascimento, coordenador de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil.  No caso brasileiro, entretanto, o puro de aumento de impostos é alvo de questionamentos, como mostrou o webinar “O Brasil deve aumentar impostos para combater a pobreza?”, promovido pelo FGV IBRE em parceria com a Folha de S. Paulo, moderado por Fernando Canzian, repórter especial do jornal. No evento, Vilma Pinto, assessora da Secretaria de Estado da Fazenda do Paraná, apontou que em geral países com carga tributária elevada tendem a ter um grau de desigualdade de renda mais baixo que os demais. Mas o Brasil, apesar de contar com uma carga tributária alinhada à média dos países da OCDE (33% do PIB), similar à de economias como Reino Unido, Espanha e Canadá, é um ponto fora da curva por seu alto nível desigualdade de renda, medido pelo Índice de Gini, ou mesmo sua posição no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU: 84ª entre 189 países – resultado de 2019, antes da pandemia.

Carga tributária versus desigualdade e desenvolvimento humano
(Gini e IDH médidos pré-pandemia)


Fonte: OCDE e ONU. Para carga tributária, valor de 2019 ou o mais recente. No Índice de Gini, quanto mais próximo de zero, maior é a igualdade de renda. O IDH mede condições de saúde, educação e renda; quanto mais próximo de 1, maior o IDH.

“Sem um diagnóstico claro de por que não avançamos no combate à desigualdade com a carga tributária que temos, corre-se risco real de se assumir um ônus sem o bônus. Ou seja, de aumentar ainda mais essa carga, mantendo os mesmos problemas”, afirmou Samuel Pessoa, pesquisador associado do FGV IBRE. Ainda que fontes de ineficiência já tenham sido identificadas, a efetividade de propostas para mitigá-las depende de sua acurácia em atacar o problema, apontam Pessoa e Vilma. Um exemplo é a necessária revisão e redução dos gastos tributários, ou seja, isenções fiscais que somente no âmbito dos tributos federais hoje somam 4,2% do PIB, ou R$ 307,9 bilhões. A Emenda Constitucional 109, resultante da PEC Emergencial, por exemplo, exige o estudo de medidas para que em até oito anos esses benefícios sejam reduzidos a um percentual não maior que 2% do PIB. Apesar de elogiar o princípio da medida, Vilma alerta que as exceções colocadas na EC 109 – que livram do corte políticas como a do Simples Nacional, da cesta básica e da Zona Franca de Manaus –  já representam quase 2% do PIB. Isso significa que, para se cumprir a meta, será preciso praticamente eliminar todos os outros benefícios, independentemente de qualquer avaliação mais detalhada de seu mérito. “Não considero viável reduzir esse estoque a zero. Além disso, o ponto não é reduzir por reduzir, mas estudar quais políticas efetivamente podem gerar resultados, se sua implementação via gasto tributário é a mais adequada, se poderia ser feita por gasto direto, ou mesmo por gasto tributário sob um desenho diferente”, afirmou. A economista também ressalta que a reversão de uma política tributária não significa necessariamente garantia de uma volta automática da arrecadação renunciada, “posto que pode haver mudanças na estrutura econômica que façam com que esse valor seja diferente”.

Gasto tributário e a EC 1-9/2021


Fonte: Elaborado por Vilma Pinto.

Pessoa, por sua vez, mencionou a difícil tarefa de reverter a baixa progressividade da estrutura dos impostos diretos no Brasil. “O ministro da Economia Paulo Guedes costuma mencionar que tivemos um longo período de hegemonia social-democrata – mais de duas décadas, somando os governos de PSDB e PT –, em que se buscou combater a desigualdade com uma série de programas sociais. Mas nesse tema específico da elevação da progressividade do imposto de renda (IR), não se conseguiu avançar”, disse. Pessoa reconhece que, ao se chegar no reduzido estrato dos mais ricos, a relação entre alíquota de IR e a renda passa a ser decrescente. Mas alerta para o que considera uma abordagem equivocada e irresponsável de se olhar a capacidade arrecadatória de impostos sobre ricos como quase ilimitada. Estudo recente  de pesquisadores do Ipea, entre os quais Rodrigo Orair, pode dar uma amostra desse limite. Os pesquisadores calcularam a capacidade arrecadatória de um imposto sobre o patrimônio aplicando o caso brasileiro sobre dois exemplos: o imposto adotado na Espanha, com alíquotas progressivas de 0,2% a 2,5% sobre o valor do patrimônio que excede um determinado limite de isenção; e o da Noruega, que possui alíquota única de 0,85% e um limite de isenção mais baixo que o verificado na Espanha. Ambos os resultados, levando em conta uma eficiência de arrecadação de 80% do potencial, chegaram a receitas muito próximas, em torno de R$ 20 bilhões, ou 0,3% do PIB.

No webinar, Pessoa ainda destacou o déficit estrutural que também precisa ser equacionado para um manejo virtuoso das demandas sociais do país. “Em condições normais de funcionamento da economia, a última conta feita por Vilma aponta que esse déficit é de 1% do PIB. Isso significa que temos que construir um superávit de uns 2% para não permitir que a dívida pública continue crescendo”, descreveu, chegando a um “buraco fiscal da ordem de 3% do PIB”. Para ampliar em 1% a 1,5% os gastos com um novo Bolsa Família, calcula Pessoa, seria preciso conquistar um superávit de ao menos 4% do PIB. “Temos um problema dramático, por isso é importante que sempre discutamos esse tema com os pés no chão, sem buscar falsos inimigos, falsos agentes poderosos culpados pelos nossos problemas”, afirmou.

Para Jefferson Nascimento, atender à demanda social dependerá de um arranjo de ações. “Não há solução única. São diversos ajustes, que precisam ser feitos com avaliação e com a devida transparência”, afirmou. O coordenador da Oxfam Brasil defendeu, entretanto, que a experiência da primeira fase do auxílio emergencial – que permitiu que, em agosto de 2020, a extrema pobreza caísse para menos da metade da registrada antes da pandemia, de acordo ao FGV Social –, aguçou a percepção dos brasileiros sobre a importância da ajuda do Estado para o combate à pobreza e, logo, à desigualdade. “Em nossa pesquisa, 86% afirmaram acreditar que o progresso do Brasil está condicionado à redução da desigualdade de renda”, disse.

Resta buscar, dentro do sistema tributário brasileiro, frentes que colaborem para a construção desse horizonte. “Concordo que será preciso um pouco de tudo: mirar os subsídios tributários, com bons estudos de eficácia, e reduzi-los conforme objetivos não forem alcançados; fazer programas de aumentar carga tributária; e continuar com a agenda de reformas do estado para reduzir gastos”, afirmou, citando o exemplo do sistema judiciário, “com o qual gastamos 2,5% do PIB, enquanto qualquer país do mundo gasta 1%”, e as despesas com aposentadorias e pensões de servidores públicos de altos salários. “Somos uma sociedade que outorgou para uma categoria de trabalhadores perpetuidades de renda que são incompatíveis com capacidade fiscal do estado”, disse. Pessoa também apontou a necessidade de se buscar eficiência tributária simplificando o sistema de impostos indiretos, para tornar o funcionamento da economia mais eficiente, gerando crescimento e a possibilidade de geração de mais emprego.

Vilma, por sua vez, reforçou que melhorar o atual sistema tributário é essencial nessa tarefa de ampliar a arrecadação. “No padrão internacional, nossa carga tributária já é elevada, porque é próxima de países de economia avançada e distantes de emergentes. Mas quando olhamos a composição em relação aos primeiros, ela é muito diferente. Tributamos muito consumo, pouco renda. Precisamos de maior progressividade e, como disse Pessoa, simplificar nosso sistema”, citou. Sobre as duas fases da proposta de reforma tributária apresentada pelo governo – a primeira, de unificação de impostos sobre consumo no nível federal e a segunda, anunciada no final da semana passada, sobre o imposto de renda – Vilma considera que podem ajudar, ressaltando que os problemas do sistema não se resumem a isso. “Temos que avaliar a tributação sobre salários, melhorar a composição por base de incidência da nossa tributação e tentar aproximar o país de um sistema tributário mais eficiente e justo”, conclui.

Reveja o webinarO Brasil deve aumentar impostos para combater a pobreza?

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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