Ajuste pela receita: especialistas discutem modelos de tributação em evento do Observatório de Política Fiscal

Por Solange Monteiro, o Rio de Janeiro

Nesta semana, o Observatório de Política Fiscal do FGV IBRE lançou seu canal no Youtube. A estreia foi marcada por um debate técnico no qual Manoel Pires, pesquisador do FGV IBRE, coordenador do Observatório, convidou três especialistas para contribuir com a definição das linhas de pesquisa do Observatório sobre tributação progressiva e crescimento no Brasil.

A motivação do tema, expressa em um texto de trabalho escrito por Pires, está na ordem do dia no mundo: buscar um modelo de tributação ótima sob uma conjuntura em que as economias globais, impactadas pela pandemia, precisam pensar em um ajuste fiscal pelo lado da receita – seja para pagar os gastos gerados com a crise sanitária, seja para bancar pacotes de estímulo –, sem comprometer sua capacidade de crescimento. Isso ainda se dá sob um contexto de evolução do pensamento acadêmico sobre tributação que parece entrar em um definitivo ponto de inflexão depois da grande onda de desoneração do capital iniciada pós-Bretton Woods, como lembra o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa, pesquisador associado do FGV IBRE. Um movimento que cresce gradualmente a partir da constatação de que a desoneração do capital, que deveria colaborar para a geração de emprego, não trouxe a resposta esperada no mercado de trabalho, levando-o à precarização. “É um questionamento que cresce com a crise financeira de 2008, o Occupy Wall Street e a lenta retomada do mercado de trabalho nos Estados Unidos, a percepção de aumento da desigualdade de renda como apontada por Thomas Piketty. E que agora dá um salto com a pandemia, com o aumento da população sob riscos sanitários e socioeconômicos”, descreve Rodrigo Orair, pesquisador do Ipea, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal.   

Ainda que o fortalecimento da ideia de “reoneração” do capital esteja dado, Pires observa que não faltam divergências quanto a como isso deve ser feito. “Há uma corrente que ainda defende certo critério para tal tributação, de que esta deveria acontecer apenas sobre excedentes. Outra que segue a mesma linha, mas considera que, sendo a tributação de capital mais elástica que a do trabalho, recomenda uma alíquota inferior à aplicada à tributação do trabalho. E a visão de uma nova literatura, que defende que o processo de acumulação de capital se deu a partir de estruturas de poder que só geram desigualdade e por isso é necessário uma maior tributação do capital”, descreve. No campo das ideias disruptivas embaladas pelo impacto da pandemia, Barbosa cita o exemplo da discussão observada em países europeus da criação de fundos sociais de riqueza alimentados por dividendos de estatais e de empresas. “A partir de um determinado nível de lucro, empresas pagariam parte de seus impostos com emissão de ação preferencial para o governo. Isso significa que o governo nunca teria direito a voto, mas seria um acionista de companhias como Apple, Amazon, Facebook. E os dividendos financiariam programas de renda básica ou focalizada. Há quem brinque que seria o fim do capitalismo com todo mundo virando capitalista”, descreve Barbosa.

No caso brasileiro, Pires ressalta que as discussões muitas vezes partem de uma interpretação equivocada sobre a tributação brasileira. “Muitas vezes vemos críticas à tributação sobre patrimônio, mas não observamos que essa tributação no Brasil é próxima à média dos países da OCDE. O mesmo acontece com a tributação corporativa”, descreve. Isso indica que o desafio se concentra na qualidade da tributação e nas distorções verificadas no sistema. “Dois países com a mesma carga tributária podem observar efeitos diversos desta sobre seu crescimento, pois o custo de conformidade pode ser diferente entre eles”, ressalta Barbosa.

Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCif), considera que uma forma de reduzir as distorções presentes no sistema brasileiro é buscar estrutura-lo uniformizando regras, ainda que estas sejam progressivas. Um exemplo, defende, é diferenciar dois blocos de tributação: de um lado unindo renda do trabalho e tributação da folha e, de outro, a tributação de renda do capital. No caso da renda do trabalho e tributação de folha, ele exemplifica o grau de distorção existente no sistema demonstrando a disparidade de alíquotas conforme o tipo de enquadramento no mercado de trabalho. “No Brasil, um trabalhador formal que ganha R$ 6,5 mil está submetido a uma alíquota marginal sobre a renda de 40% (considerando a contribuição sobre folha); um funcionário público que ganha R$ 30 mil tem alíquota marginal 27,5%; e um PJ sob o regime de lucro presumido que ganha R$ 200 mil por mês está sujeito a uma alíquota marginal de 13,2% sobre sua renda”, descreve. Nesse caso, defende Appy, o ideal seria eliminar a contribuição sobre folha acima do teto, aumentar a alíquota marginal do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) – ele cita um teto de 35% como razoável –, e tratar a renda do PJ como se fosse renda de pessoa física. “Porque, no fundo, isso também é uma renda do trabalho. Não pode ser diferente em função do tipo de enquadramento”, diz.

Appy defende que, para ampliar esse modelo para as faixas mais baixas de renda, seria necessário incorporar um benefício previdenciário universal, por exemplo, de até um salário mínimo, subsidiado pelo governo. “Acima disso, haveria uma correlação atuarial entre contribuição e benefício, tanto na tributação da folha quanto da renda, adotando uma só regra para todos”, descreve. “Esse tipo de mudança – desonerando o primeiro salário mínio, passando depois a tributar na margem, favorece a formalização e a incorporação em um mesmo sistema de todas as formas de relação do trabalho”, diz.

Já para o bloco da renda do capital, Appy segue o mesmo princípio, de igualar regras. “O ideal seria integrar tributação da renda do capital com a da pessoa física, levando para o IRPF a renda do capital”, diz, indicando, entretanto, que é preciso ter cuidado com a forma. “Deve-se considerar, por exemplo, que uma alíquota alta sobre a renda do capital pode ter efeito sobre a alocação de capital em um contexto de competição internacional”, afirma. Appy conta que está trabalhando na elaboração de um projeto de tributação de renda do capital, e que nesse processo também tem identificado muitas distorções do sistema. “Considero que o caminho seja mitigar diferenças entre lucro contábil e fiscal; e definir uma alíquota básica de rendimento nominal para toda a renda de capital”, diz, ressaltando as diferenças presentes no sistema atual, por exemplo, para tributar aluguel. “Hoje a alíquota que incide sobre aluguel pode ser de 27,5% se se é dono de um imóvel, de 11% a 14% em caso de empresa sobre lucro presumido; ou zero no caso de recebimento por fundo de investimento imobiliário com cota negociada em bolsa”.

No caso da tributação de patrimônio, Appy considera que ainda há campo para aumento de imposto. No caso da taxação de grandes fortunas, aponta que nesse caso também é preciso pensar na competição internacional. “Se todos os países do mundo tributassem igual, não teria problema nenhum. Na hora em que um país faz e outro não, a tendência é de se deslocar patrimônio”, alerta, indicando que isso deve ser considerado no desenho de um sistema tributário. “No caso da um modelo de tributação “once for all”, como se discute no Reino Unido, o grande problema é que, se não se for convincente, estimulará pessoas a tirar capital do país. E no Brasil não somos muito bons nisso”, afirma.

Rodrigo Orair, por sua vez, aponta que a literatura tem tratado o imposto sobre patrimônio como “second best”, lembrando as diferentes brechas que se podem encontrar nesse tipo de tributação. “No caso de imposto sobre herança, por exemplo, os ricos costumam fazer planejamento sucessório e não o pagam”, cita. “O ‘first best’ é ter um modelo amplo de imposto de renda, numa tabela progressiva, e um imposto sobre herança. Se tenho brechas no meu imposto de renda e no modelo de herança, aí justifica ter um ‘second best’ e complementar com imposto sobre riqueza”, diz. 

Manoel Pires pretende ampliar o debate sobre cada segmento tratado nesse primeiro webinar, cujo resultado ficará registrado no site do Observatório.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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