20 anos do Bolsa Família: evidências e agenda futura

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Na última terça-feira, a FGV Rio sediou encontro sobre o Bolsa Família, programa de transferência de renda que em outubro completará 20 anos. No encontro, pesquisadores de diferentes instituições apresentaram estudos que apontam impactos do programa observados até agora, e recomendações para o futuro do Bolsa Família.

A primeira constatação dos  presentes foi o benefício de se contar com um programa que desde o início teve seus dados abertos e disponíveis para que pesquisadores pudessem avaliá-lo. “Tratando-se de um programa da dimensão do Bolsa Família (BF), poder pesquisá-lo de forma robusta significa uma importante contribuição”, afirmou a portuguesa Joana Silva, do Banco Mundial, referindo-se à análise de políticas de transferência de renda em nível global.

Um dos temas de destaque nas apresentações foi a conexão dos beneficiários com o mercado de trabalho. Presente no evento, Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), enfatizou a importância de se pensar na inserção produtiva dos beneficiários do Bolsa Família, destacando especialmente a característica urbana da pobreza, bem como o aumento de escolaridade entre os beneficiários. “Hoje, dos 28,5 milhões inscritos no BF que estão em idade para trabalhar, 10% estão formados ou concluindo o nível superior; no ensino médio, são 14 milhões, muitos com vocação empreendedora. Precisamos olhar para a demanda de qualificação e de política de crédito para tirá-los da pobreza”, afirmou.

Percentual de famílias com crianças fora da pobreza


Fonte: MDS.

Dias também destacou a preocupação que houve, no desenho da nova etapa do programa, em aprimorar o caminho de saída do benefício para evitar desincentivos à inserção no trabalho por um lado e, de outro, vulnerabilidades nessa transição. “Pelas regras atuais, se algum membro da família tem um emprego com carteira assinada, mas a renda per capita ainda se mantém abaixo da linha da pobreza de R$ 218, o benefício é mantido. Se mais algum membro consegue emprego formal e a renda per capita supera a linha da pobreza, mas ainda é abaixo de R$ 660, que é o objetivo do programa, a família passa a receber 50% do benefício. E se com a soma dos salários dos empregados a renda per capita supera os R$ 660, essa família sai do BF, mas não do Cadastro Único: se a renda cair novamente, ela já volta para a proteção. Com isso, não há medo de assinar a carteira”, descreveu.

Esse controle tempestivo, operacionalizado pelo governo, não inclui o emprego informal. Mas já garante o avanço, aponta Rafael Osório, do Ipea, de não se depender de atualizações feitas pelo próprio beneficiário nos Centros de Referência da Assistência Social (Cras). “Integração de base de dados é algo que não fica visível para a população, mas é importante. O Brasil tem registros administrativos ricos, um ecossistema de dados que nos permite conhecimento de boa parte da renda dos brasileiros. E, ao trazer dados para o Cadastro Único,  permite-se fazer essa atualização automática”, afirma.

Osório destacou que, com o atual esquema de benefícios – o básico de R$ 142, sendo um por pessoa; complementar de R$ 600 para o valor mínimo por família; R$ 150 para cada criança de 0 a 6 anos; e R$ 50 por crianças de 7 a 17 anos, gestantes e nutrizes –, o percentual de famílias protegidas contra a pobreza no Brasil saiu de 79% em janeiro para 84% em março (quando entrou em vigor o Benefício Primeira Infância) e 92% em setembro com os demais benefícios, destacando que o para nutrizes ainda começará a ser distribuído em outubro. “Isso significa 3 milhões de famílias a mais dentro do sistema, somando 19,7 milhões protegidas da pobreza”, descreve.

Evidências sobre conbte à pobreza intergeracional
Situação dos beneficiários dependentes de 7 a 16 anos em 2005, após 14 anos

 

Taxa de saída do CadÚnico dos dependentes de 7 a 16 anos, por região de origem em 2005 


Fonte: "Uma análise da primeira geração de beneficiários do progama Bolsa Família",  IMDS.

Um dos destaques apontados pelos pesquisadores no evento foi a importância do foco na primeira infância. “O Benefício Primeira Infância implicou um aumento de 23% na renda média das famílias com crianças de 0 a 6 anos, que representam 34% do total”, afirmou Daniel da Mata, da FGV EESP. “A literatura internacional conta com diversos estudos apontando que políticas voltadas a esse grupo são as que mais têm retorno”, ressaltou, destacando que o trabalho com esse grupo é o primeiro passo para se romper o ciclo intergeracional da pobreza.

A capacidade de crianças superarem a condição de pobreza de seus pais, aliás, é uma das mais desafiadoras de ser mensuradas. No evento, Valdemar Pinho Neto (FGV EPGE) apresentou estudo realizado no âmbito do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), do qual participou como pesquisador associado, que buscou capturar evidências de melhora na condição de vida das crianças que tinham de 7 a 16 anos em 2005, a partir, entre outros dados, de sua situação no mercado de trabalho em 2019. “A escolha de 2019 foi pensando em eliminar qualquer ruído de informação provocado pela pandemia”, explicou. 

O primeiro resultado a que os pesquisadores chegaram foi o de que 64,1% desses dependentes de beneficiários do BF em 2005 estavam fora do Cadastro Único em 2019, quando essas crianças chegaram à idade entre 21 e 30 anos. Há, entretanto, uma diferença importante quando se compara esse resultado entre regiões do país. Enquanto a taxa de saída na região Sul foi de 74%, no Nordeste foi de 58%, e no Norte, de 61%, apontando que o desafio de superação da pobreza nessas regiões ainda é maior. "Também observamos taxas de saída maiores entre brancos, homens, crianças mais velhas e crianças com titular responsável com maior nível de escolaridade", acrescenta Pinho Neto. 

Ao cruzar dados dos dependentes de beneficiários do BF de 2005 com os dados de mercado formal entre 2015 e 2019 disponíveis na Relação Anual de Informações Sociais (Rais), os pesquisadores identificaram que 44,7% desses jovens adultos haviam passado pelo mercado formal de trabalho ao menos uma vez no período, totalizando 5,2 milhões de pessoas. Desse grupo, 32,2% foram encontradas na RAIS nos 5 anos pesquisados. Também nesse levantamento, Pinho Neto destaca que as diferenças regionais são marcantes. Enquanto na região Sul os que estavam na Rais durante 3 anos ou mais representaram 42,9%, na região Norte esse percentual foi de 17,2% e, no Nordeste, 22,6%.

Ainda de acordo aos dados do Ministério do Trabalho, 66% do total dos dependentes de beneficiários em 2005 que foram identificados na Rais na segunda metade dos anos 2010, tinham ensino médio completo.  Com curso superior ou mais, eram  4,6%  – contra 16,5% de grupo com mesmas características etárias que não foi beneficiado pelo BF. Entre o grupo beneficiário do BF, a faixa salarial média mais frequente foi de 1 a 1,5 salário-mínimo, perfazendo 50,9% do total.

Benefícios ao emprego mesmo fora do BF

Joana, do Banco Mundial, apresentou estudo do Banco em que destaca que os benefícios ao mercado de trabalho com o programa de transferência de renda vão além do universo dos contemplados pela transferência. “Há efeitos indiretos nas economias locais, que identificamos ao comparar municípios com maispresença do programa e outros com menos. O que nos leva a concluir que, mesmo em períodos nos quais o programa gerou um ligeiro desincentivo ao trabalho, o efeito total para a economia foi positivo”, afirmou.

Distribuição dos beneficiários dependentes de 7 a 16 anos do BF em 2005 por permanência no emprego formal
Dos cerca de 5,2 milhões, 44,7% foram encontrados na RAIS ao menos uma vez entre 2015-19, sendo:

 

Diferentes taxas de acesso (%), segundo a região de origem:


Fonte: "Uma análise da primeira geração de beneficiários do progama Bolsa Família",  IMDS.

Entre as conclusões do estudo, o Banco Mundial aponta um efeito multiplicador de 2,16 por dólar investido no Bolsa Família. Levando em conta o custo de cada emprego formal criado graças à dinamização da economia proporcionada pelo BF, diz Joana, os ganhos com o programa compensam em dobro os seus custos. “Observando o padrão de gastos dos beneficiários com base na POF 2008-09, observamos que 2/3 foram feitos em lojas formais, e 54% em serviços (non-tradables). Também observamos impacto positivo nos depósitos bancários e no crédito”,acrescentou.

Impactos estimados em municípios graças ao Bolsa Família

Fonte: "Efeito das Transferências Monetárias na Economia Local: Evidência sobre o Progama Bolsa Família", Banco Mundial.

Marcelo Neri, do FGV Social, destacou o desafio atual do Bolsa família de ser eficaz dizante com um orçamento que agora supera em duas vezes o observado até antes da pandemia, de 0,5% do PIB. “Sob a perspectiva fiscal, é praticamente um novo programa”, ressaltou Tiago Falcão, do Banco Mundial. Além do desafio de manutenção do espaço fiscal para manutenção do BF, Falcão destacou a importância de uma boa coordenação com a operação de programas complementares dentro da assistência social, e aprimoramento contínuo da focalização do programa. Uma das recomendações do Banco, nesse caso, é o gradual restabelecimento do pagamento do benefício por pessoa para manter a efetividade do programa. “Também é preciso trabalhar a capacidade do BF de responder tempestivamente a crises e choques, afirmou.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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