Mercado financeiro mostrou que pode não perdoar a política de Trump, afirma Samuel Pessôa

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Os 100 primeiros dias do segundo mandato do presidente Donald Trump foram marcados pelo impacto negativo que o modus operandi de seu governo está deixando para a credibilidade do país como porto seguro da economia mundial. Levantamento da Bloomberg mostra que a desvalorização de ativos medida pelo índice S&P 500 – que congrega as ações mais representativas negociadas na Bolsa de Nova York e na Nasdaq – nesse período, de 7,9% foi a pior desde que Gerald Ford assumiu a Presidência do país com a renúncia de Richard Nixon, em setembro de 1974. Nos primeiros 100 dias de Ford no timão do país, a queda do índice foi de 11,8%. O índice DXY, por sua vez, que mede a desvalorização do dólar frente às demais moedas, chegou a registrar queda de mais de 8% no acumulado de 2025 até meados de abril.

No início de maio, o S&P 500 tinha recuperado boa parte das perdas trilionárias. O dólar, por sua vez, recuperou-se parcialmente, com o DXY começando maio em queda de 4,79%, depois de anúncios de flexibilização das medidas anunciadas no Liberation Day, bem como sinais de possível negociação com a China depois de a guerra comercial entre ambos os países ter escalado para tarifas de três dígitos.

“O mercado financeiro tratou os Estados Unidos como uma economia emergente. Mostrou que, se fizer bobagem, tratará o país mal do mesmo jeito”, afirmou Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, em webinar promovido na semana passada pela Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE) conduzido por Cristiane Schmidt, vice-presidente da ABDE, e Gustavo Miró, diretor da ABDE Jovem.

Pessôa destacou que, no caso do comportamento do câmbio, a política adotada pelo governo Trump aponta a uma tendência contrária à observada em abril. “Há dois motivos para que acreditássemos que a moeda deveria ter se valorizado. O primeiro é de uma compensação ao aumento das tarifas; o segundo é o aumento de incerteza gerado pelo comportamento do governo Trump nesse início de mandato. Quando há incerteza, em geral observa-se um movimento de corrida para o dólar, e a moeda se valoriza”, descreveu.

O pesquisador destacou outros fatores que podem ter levado a uma deterioração adicional na confiança no país. Além do que classificou como “péssima qualidade da formulação da política econômica”, citou a tendência de o presidente americano governar no limite da legalidade. “A impressão que tenho é que o direito consuetudinário (base do sistema jurídico dos EUA) dá poder mais discrionário aos líderes, por ser menos detalhista. Quando o Executivo tenta governar o tempo todo na zona cinzenta da lei, o Judiciário não tem muitos instrumentos para barrá-lo”, afirmou, lembrando que no Brasil o poder do Judiciário em dar a última palavra é maior. “Nesse desenho institucional dos EUA, só quem consegue moderar o presidente em determinadas circunstâncias é o Congresso”, completou, lembrando que hoje o Legislativo americano é predominantemente trumpista, e qualquer correção nesse sentido só acontecerá nas eleições de meio de mandato. “Até lá, a vida será dura, e poderemos ver 16 meses com muita arbitrariedade”, constatou Pessôa, reforçando que a somatória de uma política econômica identificada como de baixa qualidade e fraqueza institucional já foi suficiente para o mercado financeiro rebaixar o tratamento dado ao país.

No encontro online, Pessôa reforçou a análise publicada na coluna Ponto de Vista de abril sobre a premissa do governo Trump de que, devido ao dólar ser meio de pagamento global, e os títulos da dívida soberana dos EUA serem altamente demandados, o dólar de equilíbrio tende a ser mais valorizado, o que prejudica a indústria de transformação. “Penar que o déficit da balança comercial americano é um problema é um diagnóstico errado”, afirmou, lembrando que a conta das transações dos EUA com o mundo é compansada por outros fatores - que Pessôa detalhará em sua coluna da edição de maio da Conjuntura Econômica.

Também relembrou que a aplicação de altas tarifas de importação pelo governo de Trump se apoia em literatura recente que mostra o país como o menos afetado entre as principais economias sob um cenário de guerra comercial. O estudo leva em consideração a dinâmica das cadeias globais de valor e simula um cenário em que cada país passasse a operar tarifas no nível que lhe interessasse, chegando a uma tarifa de equilíbrio de 40%. O resultado é que os Estados Unidos seria o país que sofreria menos com perda de bem-estar. Pessôa considera que a equipe de Trump viu esse resultado e achou que teria mais poder de barganha contra a China. “Eles cometeram o mesmo erro da Alemanha com a Rússia”, citou. “A estratégia alemã foi a de estreitar relações comerciais com os russos, visando a transferir parte do risco de perda de bem-estar a esse parceiro, visando alcançar um nível moderado de negociação. Mas essa moderação não aconteceu”, disse Pessôa, lembrando que essa alternativa, por exemplo, deixou o país muito dependente do gás russo, o que resultou em uma crise de abastecimento quando a guerra contra a Ucrânia foi deflagrada.  O pesquisador aponta que o erro foi desconsiderar que esse tipo de moderação é mais efetivo quando ambas as partes são democracias. “Em democracias, quando existe ameaça de perda econômica, um líder corre risco de perder a eleição seguinte. Já as autocracias são capazes de impor perdas de bem-estar ao cidadão para atender a outros objetivos.”

Pessôa considera que o governo chinês blindará a indústria do país de qualquer crise. Uma das estratégias deverá ser a ampliação da oferta de seus produtos no restante do mundo. “O país não tem inflação, então também poderá ampliar o déficit público para promover – como já tem feito – uma série de políticas para subsidiar o consumo dos chineses. Outra possibilidade será pagar para as empresas manterem sua estrutura paralisada temporariamente”, cita. O resultado disso, avalia, tende a ser estagflação nos EUA e um efeito desinflacionário para os demais países que comprarem da China, possivelmente em condições mais vantajosas. “Para o Brasil, será necessário ponderar dois efeitos: a desinflação em bens manufaturados versus um possível efeito inflacionário de aumento de demanda por produtos agrícolas, caso se mantenha uma restrição da demanda por grãos americanos”, afirmou, ressaltando, entretanto, que para o agro o impacto em 2025 já foi precificado nos primeiros meses do ano, que concentram os embarques de grãos.

Em sua moderação, Cristiane Schmidt – que é colaboradora da Conjuntura Econômica  – destacou a preocupação com as perspectivas para a trajetória da dívida pública americana, relembrando as diversas revisões da meta de redução do déficit primário, que saiu da casa do trilhão de dólares para algumas centenas de milhões. “Isso traz implicações para a capacidade de investimento, necessidade de aumento da poupança interna”, disse, destacando o complexo equilíbrio entre os objetivos do governo de compensar uma prometida redução da tributação com corte de gastos e aumento da receita com tributos sobre a importação.

No evento, Otaviano Canuto, membro sênior do Policy Center for the New South, reforçou o alerta sobre “promessas de campanha que não batem”, lembrando que a ideia de apoiar o financiamento do Tesouro na arrecadação com tarifas de importação é “uma volta ao passado” que pode gerar impactos negativos. Canuto também ressaltou as dificuldades em traçar tendências para a economia americana a partir do desempenho do primeiro trimestre –  marcado por eventos como uma corrida a importações de diversos setores que buscaram escapar do impacto do aumento tarifário.  O ex-vice-presidente do Banco Mundial lembrou, entretanto, dos recortes na projeção para o PIB já divulgadas, como a do FMI, que rebaixou a expectativa de expansão do PIB dos EUA em 2025 de 2,7% para 1,8%.

 


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