Em Foco

O motorista de táxi

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Vou, uma vez mais, sair do campo da economia. Mas a riqueza que, muitas vezes, a vida nos oferece, para o bem ou para o mal, me leva a descrever, sinteticamente, uma viagem de táxi que tive esta semana. Parecia um livro do Kafka ou do Ítalo Calvino.

Na última quarta-feira (24), peguei um táxi na rua Santa Clara, em Copacabana, aqui no Rio. Voltava para casa depois de ir tomar um café e dar um beijo em minha filha, que mora ao lado da Santa Clara. O destino era o Flamengo, a cerca de 7 quilômetros de distância. Mal me sentei no banco traseiro, o motorista, um senhor com forte sotaque de uma mistura de português, espanhol e italiano, desandou a falar. O assunto: política.

O homem estava completamente transtornado. Na introdução, começou a falar que morava há mais de 53 anos no Rio e que a cidade estava falida, com o que concordo. Que aqui não tinha mais restaurantes. “O Antiquarius fechou”, lamentou (três antigos funcionários do famoso restaurante abriram o Entreamigos, mantendo algumas receitas tradicionais, como o famoso arroz de pato e um suculento pernil de cordeiro). E há muitos restaurantes no Rio, de excelente qualidade.

Prosseguiu dizendo que casas noturnas, muitas de exploração sexual, haviam fechado, como a La Cicciolina, na Praça Princesa Isabel, hoje transformada em uma loja da rede Casa&Video. Que tinha uma empresa de táxi de luxo destinada a executivos, com motoristas bilingues, onde chegou a empregar mais de 120 pessoas. Embora não tenha revelado, possivelmente a falência de sua empresa deve estar ligada ao fechamento das casas noturnas a que ele se referiu, para onde levava e trazia executivos de passagem pelo Rio.

Depois de espinafrar a cidade – segundo ele, todos os governadores do Rio eram comunistas, e por isso ladrões, sendo presos –, começou a enveredar para as próximas eleições presidenciais. Peguei meu celular para ver e-mails de trabalho e notícias nos sites, mas ele continuava a falar desenfreadamente, sem a mínima consideração se estava ou não querendo ouvir sua preleção, carregada de ódio.

Disse que tinha dois filhos que estudaram no Colégio Pedro II, tradicional aqui no Rio. E que se arrependeu amargamente, pois todos os professores eram comunistas, deixando um legado ruim para seus filhos, um dos quais mora na Austrália. O Pedro II, fundado em dezembro de 1837, foi, por muito tempo, um dos colégios de excelência no Rio de Janeiro. Por suas carteiras passaram os ex-presidentes Hermes da Fonseca e Washington Luiz, escritores como Manuel Bandeira, Pedro Nava e Joaquim Nabuco, juristas como Evandro Lins, Afonso Arinos, Luiz Fux, Marco Aurélio Mello, além de uma infinidade de artistas e outras personalidades.

Havia escrito uma vez neste espaço que estava meio assustado com o aumento do desconhecimento, do ódio, do isolamentos das pessoas, quadro que tem se agravado com a perigosa polarização que estamos vendo com a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais. Sentado naquele táxi, me lembrei do texto que escrevi para esse Em Foco. Mas o nível de rancor, ódio e desconhecimento da realidade que saía da boca do motorista era muito maior do que eu previa. Acho que a situação ficou sem controle.

Releia: O mundo virando do avesso.

Evidente que cada pessoa tem o direito de ter suas opiniões, crenças. Não gostar disso ou daquilo. Usar o voto para tentar melhorar o país, da melhor forma que achar. Mas as coisas tomaram tal rumo que acho que é um caminho sem volta, se for tomado o motorista que me conduzia para casa como exemplo.

Tenho amigos de esquerda que também estão carregados de ódio, rancor. Que não admitem os erros cometidos e continuam defendendo chavões que não têm mais espaço no mundo em que vivemos. Como tenho amigos de direita, alguns ponderados, outros que, algumas vezes, chegam perto do que pensa o motorista que me disse que tem tripla nacionalidade: brasileira, italiana e espanhola.

A viagem parecia infindável, semelhante à caminhada que fiz rumo à Janela do Céu, em Ibitipoca, em Minas Gerais, que nunca chegava. Os 7 quilômetros pareciam os 16 que percorri no Parque Nacional. Só que lá os sons eram dos pássaros, dos riachos, dos passos da caminhada, do silêncio que nos envolvia quando parávamos para descansar, olhando os relevos montanhosos e coloridos do Parque Nacional de Ibitipoca.

Ver: Onde os fracos não têm vez.

E ele continuou em sua cruzada sem fim. Disse que conhecia todos os gerentes dos hotéis da orla de Copacabana. Segundo ele, todos haviam tomado cloroquina no período agudo da pandemia. Ninguém morreu. Não disse se foi vacinado. O que deveria ter perguntado, mas aí a conversa enveredaria para uma discussão a favor ou contra a vacina, no que não estava nem um pouco disposto a perder meu tempo.

Quando estávamos chegando em Botafogo, ficou ainda mais descontrolado quando um carro tentou ultrapassá-lo. Xingou o motorista, disse que só poderia ser um Uber que só entrou no Brasil devido ao Henrique Meirelles, que foi ministro da Fazenda no governo Temer e presidente do Banco Central no governo Lula. Que a Rede Globo, que “é um lixo”, é controlada pelo mexicano Carlos Slim (ele teria 80% da emissora), e que vai vendê-la para os chineses. Aí o Brasil vai acabar de vez, se tornando comunista o que, em sua opinião, só não aconteceu devido a eleição de Bolsonaro.

Falou das queimadas na Amazônia, que são uma ficção criada pelos comunistas. Disse que sabia disso porque o governo colocou três satélites para monitorar o que acontece por lá e não está havendo queimada alguma. Dos ministros do Supremo e do Congresso, disse que “não servem para nada e só atrapalham”. Que eles também são comunistas, “não deixam governar”. Que não entende como, em Ipanema, Leblon, tem gente com faixas do Lula, se o atual presidente é um enviado de Deus. “É a batalha do bem contra o mal.”    

Desancou o Lula. “Cortou seu próprio dedo para não trabalhar. Não fez nada para o Nordeste”, além de outros xingamentos que não me atrevo a reproduzir. Defendeu, com sangue nos olhos, uma guerra interna contra a ameaça comunista.

Falou sem parar até me deixar na porta do meu apartamento. Quando estava pagando a corrida, terminou: “minha mulher está na casa da minha filha na Austrália. Pedi a ela ver como está por lá. Se não tem essa coisa de comunista. Se estiver tudo bem, e o molusco, o nove dedos (referindo-se ao Lula), ganhar a eleição, vendo tudo e vou para lá. Não quero perder meus dois apartamentos e uma casa que comprei com muito trabalho e que me será tomada se a esquerda comunista assumir o governo”.

Tive vontade de dizer a ele que quem governa hoje a Austrália, uma monarquia, é o líder trabalhista Anthony Albanese, de esquerda, depois de muito tempo de controle conservador no país. Mas fiquei quieto, meio paralisado e apavorado com tanto ódio, rancor e desconhecimento. Quem sabe ele não começaria, também, a rotular o primeiro-ministro australiano de comunista?

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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