Em Foco
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Postado por Conjuntura Econômica
A vida como ela é
Alguns destaques do Boletim Macro
Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro
Tomei emprestado o título da coluna que Nelson Rodrigues escrevia, diariamente, no jornal Última Hora, de Samuel Wainer, onde retratava a vida real das pessoas, da sociedade. As crônicas geralmente giravam em torno da moral, do pecado, dos desejos, do adultério, causando escândalo na recatada sociedade carioca. Durante quase dez anos foi um grande sucesso.
Evidente que não há nenhuma semelhança no que Nelson Rodrigues escrevia e o texto que começo a desenhar. Mas o título espelha, com as devidas diferenças de foco, a complexa situação em que o país está mergulhado, mostrando, cruelmente, a vida como ela é onde a fome sem limites de deputados e senadores por verbas e cargos barra avanços na sustentabilidade fiscal. Onde há mais de um ano o ministro Haddad tenta acalmar os mercados e melhorar a saúde das contas públicas, encontrando cascas de banana por todo lado. Onde o presidente Lula, mal saído de uma cirurgia para drenar um coágulo de sangue em sua cabeça, vai ao Fantástico, na Rede Globo, e desanca a alta de juros promovida pelo Banco Central, fala mal do mercado e diz que o problema do governo é de comunicação. Mas muitos desses ruídos ele mesmo produz. Onde a ala mais dura do PT continua com o mesmo discurso de anos, em defesa da interferência do Estado na economia, de ressuscitar “campeãs nacionais”, desenvolver tecnologias próprias voltadas à Inteligência Artificial, voltar a falar em indústria naval que, como sabemos, foi um redondo fracasso, sugando bilhões dos cofres públicos, defender, novamente, uma política de conteúdo nacional. Onde os agentes de mercado jogam mais gasolina na fogueira.
Esse conjunto de fatores, e outros que não vale a pena mencionar, tem um sabor amargo. A semana começou mal, seguindo o desconforto da semana anterior. O dólar na segunda feira (16/12) atingiu sua maior cotação desde o Plano Real, mesmo com duas intervenções do Banco Central: uma oferta de US$ 3 bilhões com compromisso de recompra: a outra, de US$ 1,6 bilhão, em leilão à vista, a maior desse tipo desde o início da pandemia em 2020. Os juros futuros tiveram nova deterioração, com as taxas de curto prazo subindo ao redor de 50 pontos e as intermediárias, 60 pontos base. No dia seguinte, mesmo com o Banco Central vendendo mais US$ 2,015 bilhões, o dólar ultrapassava o patamar histórico de R$ 6,20. Os juros dos títulos do Tesouro Prefixado 2027 (LTN), com vencimento em janeiro daquele ano, já rodam acima dos 15%, taxas parecidas com as do governo Dilma, quando esses títulos ofereciam remuneração anual de mais de 15% em setembro de 2015. Na quarta (18/12), o dólar fechou em R$ 6,26, novo recorde. Ontem, (19/12), o BC fez dois leilões no valor de US$ 8 bilhões, depois que o dólar bateu nos R$ 6,30. Acabou fechando o dia em R$ 6,12. Com os leilões de ontem, as intervenções do BC no câmbio, num contexto de desconfiança do mercado sobre o controle de gastos, mais as influências de fatores externos e sazonais, já chega a US$ 20,7 bilhões este mês.
A excessiva saída de dividendos do país que, segundo o atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, seria uma das piores da história, é um dos fatores que também explicariam a alta do dólar. A maior saída de dinheiro do país seria resultado do anúncio de que o governo incluiria no pacote fiscal a isenção de Imposto de Renda para pessoas físicas com renda até R$ 5 mil. E, para pagar isso, o governo passaria a taxar os super-ricos, tributando dividendos a partir do ano que vem, o que assustou boa parte dos empresários.
Para piorar, na quarta-feira a Câmara dos Deputados começou a desidratar o pacote de contenção de gastos do governo, dando aval ao bloqueio de apenas parte das emendas parlamentares para cumprir os limites do arcabouço fiscal. Emenda apresentada de última hora pelo líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), prevê que o bloqueio de até 15% das emendas valerá apenas para as verbas não impositivas, driblando determinação do ministro Flávio Dino de que as emendas devem ter nome e endereço certos.
E pelo que vem sendo noticiado, o governo abriu os cofres de vez: a liberação de emendas extras aos parlamentares será garantida desde que os deputados votem a favor das medidas do pacote. O preço: R$ 5 milhões para cada um. Para os senadores, o preço é mais salgado: R$ 12 milhões por parlamentar, segundo noticiou a Folha de S. Paulo e o site UOL.
Ontem (19/12), a Câmara aprovou, em primeiro turno, o texto base da PEC, a proposta de emenda à Constituição. Como já se esperava, houve blindagem de emendas obrigatórias contra bloqueio, foram afrouxadas as regras para taxar supersalários, foi derrubada boa parte das mudanças no BPC (Benefício de Prestação Continuada), além de serem excluídas medidas que permitiam à União reduzir repasses futuros ao FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal). É necessário fazer as contas para saber quanto dos R$ 71,9 bilhões de reduções esperadas em dois anos ficou pelo caminho com a desidratação do pacote.
Com esse cenário, o humor do mercado se agrava: pioraram as previsões do Boletim Focus sobre a inflação – o Banco Central admitiu que o teto da meta não será cumprido esse ano –; com a Ata do Copom de sua última reunião sacramentando que os juros vão continuar subindo, pelo menos 1 ponto percentual nas duas próximas reuniões; com as declarações de Donald Trump ao afirmar que vai taxar produtos de países que colocam tarifas sobre produtos norte-americanos, citando nominalmente o Brasil e a Índia; e com a decisão do FED, o banco central norte-americano, de cortar a taxa de juros em 0,25 ponto.
Seguindo esse intrincado problema fiscal que continua sendo empurrado com a barriga há mais de um ano, pego carona em uma precisa avaliação feita pelo Boletim Macro FGV IBRE de dezembro de 2023 que já vaticinava:
“Entre os principais objetivos de uma regra fiscal, como o arcabouço, é gerar condições para a estabilização da dívida pública, melhorar a qualidade do gasto público e produzir uma política fiscal anticíclica. Porém, com toda a pressão política que estará presente em 2024, em um quadro de acirrada disputa entre a esquerda, no controle do Executivo, e o Centrão, no do Legislativo, não há certeza que essas preocupações prevalecerão no próximo ano e que as escolhas do governo irão na direção de respeitar e fortalecer o arcabouço fiscal.
Consequentemente, é difícil mensurar qual será a taxa de juros terminal do atual ciclo de queda. Mesmo com um cenário externo mais favorável, ela dependerá também da política fiscal. Diante de um cenário mais favorável no curto prazo, o risco é o mercado e o governo agirem de forma leniente e perdermos uma oportunidade de assegurar a sustentabilidade fiscal."
Como se sabe, uma política fiscal expansionista em uma economia sem ociosidade, como o que vem ocorrendo aqui, aliada a um setor público deficitário e dívida pública elevada – as previsões são de que feche o ano um pouco acima de 78% em relação ao PIB, superando os 80% no ano que vem -, são ingredientes explosivos que geram mais inflação, juros mais altos e aumento do risco. E isso leva a menor crescimento, queda de receitas e uma significativa piora para se financiar o custo do governo, e mais dívida pública.
Dia 17/12, o Tesouro Nacional divulgou seu Relatório de Previsões Fiscais onde ressalta que a dívida pública só vai se estabilizar em 2028, após atingir o pico de 81,8% do PIB em 2027. Já as previsões de mercado apontam para uma dívida de 88,9%. Anteriormente, a projeção do governo era que a dívida pública se estabilizasse em 79,6% do PIB em 2027, número que iria piorar, segundo o próprio secretário do Tesouro, Rogério Ceron.
Há dois mundos paralelos quando se fala em dívida: um do governo e outro do mercado. O gráfico abaixo espelha essa disparidade, com as projeções do governo indicando queda na dívida em relação ao PIB e a mediana do Boletim Focus mostrando trajetória ascendente.
Cenários para a Dívida Bruta (DBGG)
Tesouro piora projeções, ainda melhores que as do mercado – % do PIB*
Fonte: Mediana Boletim Focus de 16/12. *Relatório de Projeções Fiscais, divulgado pelo Tesouro em 16/12. Publicado no jornal Valor Econômico.
E é esse filme que está passando na tela agora. Há uma clara percepção dos agentes financeiros de que a dívida pública caminha para uma trajetória não sustentável, embora o governo pareça achar que ainda dá para continuar empurrando com a barriga. Mesmo com a Câmara aprovando a Reforma Tributária – o novo IVA será da ordem de 27% após a votação no Senado, e o Banco Mundial projeta 29%, a mais alta do mundo –, e o pacote de contenção de gastos do governo, já desidratado, o dólar não para de subir.
Escrevi há duas semanas que ao se olhar os números da economia a sensação é de que estamos num mar de rosas: PIB crescendo, desemprego caindo, renda do trabalho aumentando, pobreza e extrema pobreza recuando – embora há quem defenda que pela quantidade de repasses do governo para programas sociais, ela deveria ter caindo muito mais ou sido praticamente zerada. Mas como mencionei acima, o buraco parece ser mais embaixo. Há a sensação de que o governo, com os bons dados da atividade econômica, aposte que as coisas no campo fiscal podem se ajeitar mais à frente.
Veja: Uma aposta arriscada.
Quem sabe a aposta é descobrir imensas jazidas de petróleo na Margem Equatorial, que ainda está emperrada por licenças ambientais? Ser um player na questão das energias limpas, especialmente na produção de hidrogênio verde onde o Ceará, através do Porto de Pecém, está apostando todas as suas fichas? Descobrir e ampliar a exploração de metais raros? Ter sucesso na política de reindustrialização, resgatando a competividade perdida em alguns setores? Crescer, arrecadar mais. Seria essa a aposta?
Leia: Edição de setembro de Conjuntura Econômica.
O Boletim Macro de dezembro, que foi destaque na edição de ontem (19/12), do Valor Econômico, com acesso restrito a assinantes, reforça que “as nossas fragilidades fiscais deixam o país mais vulnerável ao cenário externo. Os ventos externos mudaram demandando reações muito mais contundentes no front fiscal e o Banco Central não consegue sozinho reverter este quadro. Sem dúvida, a decisão e o Comunicado do Copom foram muito adequados. A inflação corrente está se elevando e a percepção dos agentes econômicos sobre o anúncio fiscal afetou de forma significativa toda a trajetória futura para a inflação nos próximos anos. Após muitos meses de uma certa leniência com o quadro fiscal, os agentes de mercado estão extremamente céticos com relação à política fiscal, sem melhora estrutural e com riscos crescentes, tanto do lado das receitas quanto de despesas, e até com dificuldade de cumprimento do limite de despesas do arcabouço. Mas como há despesas que não entram no cálculo do arcabouço, o déficit primário deve continuar pelo menos nos próximos dois anos.
Como perdermos uma oportunidade de assegurar a sustentabilidade fiscal, a taxa de juros deve subir muito mais. Sem dúvida, até quanto a Selic pode subir vai depender se haverá ou não novas medidas de controle de gastos. Com a decisão acertada do Copom (sobre o aumento de 1 ponto na Selic na última reunião) e a clareza sobre os motivos de tal decisão, o Banco Central consegue apenas dar uma oportunidade para o Executivo e o Legislativo compreenderem a gravidade do quadro fiscal”.
Relembre: A colaboração de pesquisadores do FGV IBRE na análise do pacote fiscal do governo federal.
No IV Seminário de Análise Conjuntural, realizado no último dia 17/12, promovido pelo FGV IBRE em parceria com O Estado de S. Paulo, os pesquisadores do Instituto, Silvia Matos, José Júlio Senna e Armando Castelar enfatizaram a urgência de medidas no campo fiscal, já que o Banco Central, sozinho, não está mais conseguindo, através da política monetária, baixar a temperatura do mercado. É um cenário de dominância fiscal, onde o fiscal ganha enorme preponderância, tornando meio ineficaz a política monetária.
E seguimos a vida como ela é. Ou a deixam dessa forma.
Reveja o IV Seminário de Análise Conjuntural 2024.
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