É preciso atenção ao aumento da tomada de crédito por estados e municípios, alertam pesquisadores em texto de discussão

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Desde o ano passado, o Centro de Política Fiscal e Orçamento Público (CPFO) do FGV IBRE tem se dedicado a estudar diversos aspectos da gestão das contas públicas de estados e municípios. Um dos elementos sob análise do CPFO do FGV IBRE é o aumento da tomada de crédito por estados e municípios nos últimos dois anos. Em texto de discussão (TD) sobre as operações de crédito internas da União, pesquisadores do CPFO apontam que somente em 2024 as operações de crédito autorizadas pelo Tesouro para esses entes totalizaram R$ 48,9 bilhões, a maioria (R$ 41,2 bilhões) com garantia da União. Em 2023, foram R$ 46,5 bilhões, dos quais R$ 28,3 bilhões com garantia. No biênio anterior (2021/2022), o valor médio foi de R$ 19,8 bilhões, sendo R$ 7,5 bilhões com esse aval.

No caso dos estados, as concessões de garantias pela União em 2023 foram 398% maiores que em 2022, somando R$ 18,5 bilhões (a preços de 2024). No ano passado, o aumento foi de 33% em relação a 2023, alcançando R$ 24,6 bilhões. Parte desse resultado se deve a uma base de comparação comprimida. De 2015 a 2022, o montante de concessões de garantias ficou consideravelmente abaixo do observado no período pré-crise de 2014. Vale destacar, em contrapartida, que o período anterior à recessão de 2014-2016 foi marcado por picos de concessões, “o que dificulta definir um montante ótimo de garantias a serem concedidas anualmente”, ressaltam pesquisadores do CPFO.

Mesmo assim, a recente alta suscitou a preocupação de analistas quanto a uma repetição do ocorrido no início dos anos 2010, quando a torneira de liquidez foi aberta em alta pressão, incluindo entre os beneficiários estados já muito endividados. A aprovação de créditos com garantias para estados atingiu o topo de R$ 64,18 bilhões em 2012, em valores atualizados. Somando os montantes com e sem garantia da União, a média de aprovação entre 2012-2014 foi de R$ 72,2 bilhões. Esse pico é apontado como um dos responsáveis pela crise fiscal em que muitos entes mergulharam no período, e que para a União custou onerosas reestruturações de dívidas. “Essa comparação com o período recente, entretanto, não é adequada. Estamos distantes desses valores”, afirma Isabela Duarte Kelly, pesquisadora do CPFO, coautora do TD junto com Manoel Pires, coordenador do CPFO, e Giosvaldo Teixeira Júnior, pesquisador assistente do FGV IBRE. Teixeira lembra que a concessão de empréstimos no primeiro mandato de Dilma Rousseff foi marcada por alto nível de discricionariedade, fruto de um esgarçamento do regramento que vigia desde 1997, período marcado por renegociação de dívidas dos estados. “Desde então, fixou-se que só poderiam contrair novas dívidas os estados cuja receita líquida real (RLR) fosse superior à dívida financeira”, recorda, destacando que em menos de uma década essa diretriz foi flexibilizada mais de uma vez, abrindo caminho para o cenário do começo da década de 2010.

Para mitigar outros desequilíbrios, foram então estabelecidos novos parâmetros, com a atualização, em 2017, da metodologia do espaço fiscal. Em portaria, o Tesouro estabeleceu que o limite para a contratação de crédito pelos entes subnacionais poderia variar de zero a 6% da receita corrente líquida (RCL), a depender da capacidade de pagamento – a Capag, que gera uma classificação de A a D, sendo os entes aptos à tomada de crédito aqueles com notas A e B.  

“Diferentemente do que ocorreu no início dos anos 2010, a concessão de crédito tem se dado sem excepcionalizações das regras definidas pelo Tesouro”, afirma Kelly. Isso, entretanto, não significa necessariamente ausência de risco. “Aparentemente, o sistema que foi construído lá em 2018 está sendo testado agora, posto que de 2018 até 2020/2021 os estados não contavam com espaço fiscal para tomar muito crédito”, diz Manoel Pires. O coordenador do CPFO aponta, por exemplo, que uma característica na origem da metodologia contribui para “escorregadas” dos entes: seu caráter prócíclico, marcado pelo fato de o espaço fiscal ser calculado com base na receita corrente. Se hoje o aumento das receitas – arrecadação tributária e de transferências federais, incluindo emendas parlamentares – permitem uma maior margem de endividamento no momento de contratação do crédito, não é possível garantir sua manutenção para honrar esse compromisso no futuro. “Na prática, o que o sistema permite é contratar uma despesa de médio/longo prazo diante de um aumento corrente de receita, sem considerar a permanência desse espaço fiscal”, explica Pires, reforçando que, dessa forma, choques negativos podem resultar em deterioração das contas subnacionais e elevação da dívida pública.

Total de garantias internas concedidas a estados e municípios, em R$ milhões, a preços de 2024


Fonte: Tesouro Nacional, elaboração FGV IBRE. Valores deflacionados pelo IPCA.

Outro elemento observado no levantamento dos pesquisadores é o aumento da participação dos municípios no total do crédito autorizado com garantia: de R$ 3 bilhões em 2022 para R$ 9,8 bilhões em 2023 e R$ 16,7 bilhões em 2024, passando a representar em torno de 37% do total. Além da melhora nas receitas, um fator que pode explicar esse aumento recente são as mudanças anunciadas pelo Tesouro em 2023, parte do pacote de medidas chamado Novo Ciclo de Cooperação Federativa. A primeira foi a redução do limite mínimo para operações de crédito por municípios, de R$ 30 milhões para R$ 20 milhões, caindo para R$ 10 milhões no caso de projetos atrelados a parcerias público-privadas (PPPs). Na avaliação do governo, o limite anterior tornava o acesso a operações garantidas – portanto, mais baratas –, limitado a grandes municípios e capitais. Outra medida incluída foi a redução do número mínimo de habitantes para que municípios com Capag C ou D possam aderir ao Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (PEF) e, dessa forma, também obter crédito com aval da União. A exigência passou de população acima de 1 milhão de habitantes para com mais de 200 mil.

O pacote de 2023 também previu mudanças na metodologia da Capag, somando um critério de resiliência financeira que ampliou as chances de que estados e municípios ganhem nota de crédito com aval da União. A expectativa do governo com essa mudança era de um impacto positivo para cerca de 400 municípios, por exemplo. Outra novidade foi dar maior ênfase à qualidade da informação contábil, critério que pode tornar um ente inelegível ao crédito garantido, mas que também pode dar acesso a um novo patamar de classificação, A+ e B+, que permite um fast track na análise de crédito. Além disso, aos estados e municípios com notas A e A+ foram banidas restrições em termos de limites para operações de crédito (exceto os do Senado). De acordo ao Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais do Tesouro, de 2023 para 2024, 11 estados apresentaram melhora na nota final de Capag, e 21 estados e o Distrito Federal foram avaliados com nota final de Capag igual a A, A+, B ou B+.

Bruno Funchal, que foi secretário Especial do Tesouro e Orçamento (maio-outubro de 2021), secretário do Tesouro Nacional (julho de 2020 a maio de 2021), e secretário da Fazenda do Espírito Santo (2017/2018), traduz as mudanças recentes como uma inversão da lógica até então vigente. “Se antes era preciso provar uma boa gestão para fazer jus ao crédito avalizado, agora a ideia é que o acesso ao empréstimo incentiva o ente a se organizar”, diz. Funchal, hoje CEO da Bradesco Asset, considera que isso facilitou muito o aumento das chances de entes que não estão verdadeiramente numa condição fiscal boa para pegarem operações de crédito em volumes maiores. “A inserção de análises qualitativas da informação contábil – cujo mau desempenho pode levar à suspensão de crédito – é algo importante, mas não garante que se faça uma boa gestão fiscal de fato”, avalia. Para Funchal, no agregado, estados e municípios “não chegaram ao nível de maturidade adequado para essa mudança”, avalia, defendendo a necessidade de manutenção de uma gestão mais rigorosa.

Kelly e Teixeira destacam outros pontos demandantes de monitoramento: a evolução dos limites diários nas operações com garantia da União, e a evolução da execução de contragarantias, que são acionadas quando a União tem de honrar um pagamento não realizado pelo ente tomador de crédito. Eles lembram que, no primeiro caso, resolução aprovada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) em 2023 permitiu um aumento dos limites para estados, DF e municípios de até R$ 9 bilhões para operações com garantia da União. “A justificativa para o aumento do limite foi o menor custo das operações para os entes subnacionais devido aos novos instrumentos de garantias às parcerias público-privadas ofertados pelo Tesouro Nacional”, citam, destacando, entretanto, que esse aumento também “pode vir a ser um fator de deterioração fiscal, caso os estados e municípios não sejam capazes de honrar seus compromissos”.

No caso das garantias honradas pela União, no total, desde 2016, a União realizou o pagamento de R$ 75,44 bilhões com o objetivo de honrar garantias de estados em operações de crédito. Para os municípios, o montante honrado foi de R$ 388 milhões, no acumulado de 2016 a 2024. Kelly e Teixeira apontam que, no que diz respeito às garantias recuperadas, há uma queda significativa a partir de 2017 e, a partir de 2022, “é possível observar que a recuperação dos valores honrados aos municípios também se reduz”. A maior parte das garantias honradas se concentra em estados sob recuperação fiscal – 53% são do Rio de Janeiro, e 25%, de Minas Gerais – que possuem condições especiais de refinanciamento. Isso, destaca Pires, também é objeto de atenção, posto que a nova proposta do governo federal para renegociação das dívidas estaduais, o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), envolve condições que por si só já podem representar uma perda, para a União, de R$ 1,3 trilhão em receitas financeiras até 2048, indica Pires.

“Outra fonte de preocupação são as contestações de execução de contragarantias”, diz Kelly, citando este como um fator de risco para o sistema. Relatório do Tesouro indica que, do saldo de contragarantias a recuperar acumuladas até fevereiro de 2025, de R$ 1,83 bilhão (R$ 1,59 bilhão de estados e R$ 232 milhões de municípios), R$ 1,18 bilhão envolvia pendência jurídica. Ao aumentar o volume de crédito avalizado, também é preciso analisar o aumento desse tipo de risco, alertam os pesquisadores.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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