Reforma tributária: “ainda haverá muita discussão no âmbito das leis complementares”

Braulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Uma das áreas de pesquisa a que se dedicou no âmbito da reforma tributária foi a contribuição da reforma para um aumento do PIB potencial brasileiro. Como avalia esse impacto diante das mudanças ocorridas no texto até o relatório entregue na semana passada pelo Senador Eduardo Braga (MDB-AM)?

Para tratar desse tema, vale recapitular algumas evidências. Há um trabalho (Adhikari 2020) que analisa o impacto econômico em 33 países que adotaram o modelo de tributação do IVA, substituindo total ou parcialmente os tributos sobre a produção e as vendas no varejo, que mostra que a introdução do IVA levou a aumentos expressivos do PIB por trabalhador, de quase 8% cinco anos após a reforma, e de 6% após 10 anos. Além disso, demonstra-se que esse impacto é maior nos países de renda média-alta, grupo em que o Brasil se insere, em comparação aos países ricos. Nas economias de renda média-alta, esse impacto chega a quase 26% cinco anos depois e de até 33% em dez anos após a reforma. Comecei citando essa referência para destacar que não se trata de um impacto pequeno. E o importante desse trabalho especificamente é que nenhum dos países analisados – afora poucas exceções, como a do Chile – adotou o modelo ideal de IVA, com alíquota única.

No caso do Brasil, já vemos uma desidratação por conta da questão política, da ação dos grupos de interesse. Esse distanciamento do modelo ideal vem acontecendo desde que se começou a discutir a proposta original da PEC 45, que era alíquota única de base ampla e apenas cashback para a cesta básica, eliminando a desoneração. A primeira versão aprovada na Câmara já tinha 3 alíquotas – zerada, reduzida e padrão – e com o relatório do Senado agora temos uma quarta. Novos temas que entraram no relatório divulgado na semana passada, como exceção a profissionais liberais, são de fato negativos, pois é um benefício para poucos. Basta lembrar que a maioria desse grupo já opera em regimes diferenciados. No Simples, o teto de faturamento anual é de R$ 4,8 milhões.

Ainda assim, o impacto sobre o PIB potencial tende a ser é positivo e relevante, porque vamos acabar com a guerra fiscal. Alguns dizem que essa guerra continuará existindo, mas se trata de uma meia-verdade. Por que digo isso? Porque hoje é uma “guerra” pouco transparente, feita com renúncia de receita que muitas vezes nem sabemos dimensionar. O que vai acontecer daqui em diante é uma competição tributária que estará no orçamento de despesa de cada um dos estados e municípios. Então, se os estados quiserem atrair investimentos no novo modelo, poderão usar inclusive o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR). Mas isso terá que estar explícito no orçamento de despesa – diferentemente do que acontece hoje, que trata de renúncia de receita. Além disso, agora não se poderá mais fazer guerra fiscal com chapéu alheio, roubando arrecadação do outro ao atrair uma empresa que seria mais produtiva em outro estado para o seu. A partir da reforma, a competição tributária mudará.

Outro elemento importante é a redução de legislações de Pis Cofins, ICMS, ISS que hoje têm bases diferentes, alíquotas diferentes, inúmeros regimes especiais. Teremos uma bela simplificada disso tudo. Óbvio que não estamos indo para um modelo ideal, de base ampla e alíquota única, mas certamente teremos muito menos heterogeneidade do que temos hoje. O efeito simplificador ainda é muito potente. E vamos passar por um regime de IVA em que as empresas poderão se creditar plenamente dos tributos pagos por seus fornecedores. Isso é importantíssimo, porque quebra a cumulatividade. Ou seja, mesmo nesse modelo imperfeito, que está no relatório do Senado, a gente vai ter crédito financeiro. A empresa sempre poderá se creditar de todos os tributos que seus fornecedores recolheram nas etapas anteriores. Isso é um avanço crucial em termos de redução de custo associados a cumulatividade e mesmo associado a litigiosidade.

Tal como apontou o economista Edmar Bacha em entrevista recente ao Deutsche Welle, ainda teremos efeitos positivos, mas não a ponto de compará-los ao impacto do Plano Real, como o próprio Samuel Pessôa vinha defendendo em suas análises sobre a reforma.

Considera que, da forma como estão no relatório do Senado, as exceções poderão favorecer a litigiosidade?

De fato, algumas definições estão pouco claras. Mas eu diria que, mais do que insegurança jurídica, isso deverá alimentar a arbitragem regulatória. Tal como tenho dito em algumas entrevistas, a partir de aprovada a reforma, a briga acontecerá nas leis complementares, pois todos do setor de alimentos vão querer entrar na alíquota zero da cesta básica, ou na reduzida, para citar um exemplo, e ninguém vai querer fazer parte do imposto seletivo.

Considera que a mudança prevista no Conselho Federativo – cuja estrutura tem gerado muita polêmica até aqui (leia mais) – foi positiva?

Sim, agora será um comitê gestor, um desenho mais próximo ao de uma câmara de compensação. Isso é positivo, porque antes existia o temor de que ele pudesse legislar, e nesse caso poderia confrontar a legislação básica definida na PEC 45. Agora limpou-se esse risco de ser um órgão com autonomia demais para ser mais operacional, promover um encontro de contas entre débito e crédito de empresas, bem como entre estados. Minha hipótese é de que a mudança de nome também ajuda a reduzir a celeuma gerada – ainda que não seja apenas isso que tenha mudado. Mas o fato de se chamar Conselho Federativo ajudava a alimentar a ideia de que o governo federal poderia ter algum tipo de ingerência sobre o IBS que é dos estados e municípios.

Como avalia a mudança no imposto seletivo para a cobrança de uma alíquota de até 1% em serviços de extração? Pode-se considera-lo um carbon tax?

Veja, há vários tipos de carbon tax, que é um tipo de imposto seletivo, e há mais de uma forma de se cobrar o carbon tax, não estando claro qual, na prática, qual é a melhor. Pode-se cobrar no consumo de combustíveis de origem fóssil, como uma Cide, e/ou cobrar na extração, incidindo independentemente do uso que o petróleo vai ter – se vai virar plástico, se será queimado. Tributando-se direto na produção, pode-se até estimular as empresas produtoras a mudarem seus padrões tecnológicos, ao invés de estimular apenas o consumidor a mudar seus hábitos de consumo. Considero que o que se tentou com esse 1% sobre a indústria extrativa no Brasil, na prática, foi estabelecer um carbon tax upstream.  Não acho, entretanto, que essa taxação possa de fato ser classificada dessa forma. Basta lembrar que as pegadas de carbono do petróleo e da mineração são totalmente diferentes. Na mineração, pode gerar impacto no momento da extração, mas há materiais – como lítio, cobre – que são fundamentais para viabilizar a transição energética, como na eletrificação de automóveis. No caso do petróleo, uma vez queimado, emite gases do efeito estufa. Assim, vejo essa taxação mais como um royalty.

Considera que sua existência compromete o debate em torno de um carbon tax de fato?

Acho que não necessariamente. A decisão do imposto seletivo, onde entrará o carbon tax, vai acontecer em uma das leis complementares a serem discutidas no ano que vem. Nesse momento, pode-se fazer uma calibragem, calculando a diferença. Politicamente, inclusive, é muito mais fácil tributar a produção de petróleo do que o combustível. Sabemos da experiência ainda viva dos coletes amarelos na França (manifestação que começou em 2018 contra o aumento dos combustíveis, ampliando-se posteriormente para outras reinvindicações). Ainda vale lembrar que, como já discutimos outra vezes, nossa cobrança de imposto seletivo é baixa – em 2019 representou cerca de 0,9% do PIB –, inferior à observada em países com renda per capita similar, de pouco mais de 2% do PIB, de acordo a dados do Banco Mundial (leia mais no Observatório de Política Fiscal).

Mas há alguns pontos importantes. O primeiro é que a definição de ser de 1%, não está clara, soando arbitrária. Outra questão é que ao se tributar a produção, não gerando crédito, trata-se de um imposto sobre o faturamento, igualando-se ao royalty, cuja base de incidência não é valor adicionado. Isso faz com que esse tema fique meio deslocado da discussão da PEC 45. Ainda assim, entretanto, tem efeito benéfico, porque colabora para a redução da alíquota padrão do IVA (IBS + CBS). Afinal, quanto mais regimes especiais forem criados, mais a alíquota padrão tem que se elevar. Assim, a despeito das questões que citei – de ser uma alíquota a princípio arbitrária, de não ser IVA, de misturar petróleo com mineração quando as pegadas de carbono de cada um são completamente diferentes – ele tem esse efeito benéfico de aliviar a alíquota padrão de IBS/CBS, porque é carga adicional nova que pode ser usada para financiar o imposto sobre valor agregado.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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