“Não é mais momento de se discutir impactos de um lockdown na economia”

Natalia Pasternak, microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Esta semana o presidente Bolsonaro definiu a saída do ministro da Saúde Eduardo Pazuello, substituído por Marcelo Queiroga. Qual sua expectativa com essa troca?

Não acho que veremos mudança. Trocamos seis por meia dúzia, à diferença de que o “meia dúzia” está de jaleco branco. O que o presidente Bolsonaro quis foi dizer: “Se a desculpa era que precisávamos de um médico, aí está. Agora coloquei um técnico, mas ele fará o que eu mandar”. Queiroga já deu mostras disso, pegou extremamente leve em suas declarações sobre lockdown, dizendo que é uma medida drástica e desnecessária, e também pegou bem leve na questão da cloroquina, falando que é um tratamento sem comprovação, mas que usa quem quer, defendendo que é preciso respeitar a autonomia do médico. Ou seja, não mudou em nada o discurso que já é do Conselho Federal de Medicina (CFM), do Ministério da Saúde e do próprio presidente. E não poderia ser diferente. O presidente jamais convidaria um ministro que não tivesse alinhado com as ideologias do Planalto neste momento. Partindo do pressuposto de que algum profissional sério visse uma oportunidade de tentar fazer algo pelo povo brasileiro, esse alguém teria que realmente chegar lá e pedir carta branca, mas aí não seria nomeado pelo presidente da República. O presidente não vai aceitar um ministro que não esteja alinhado com ele. Então, não vejo nenhuma perspectiva de mudança, a não ser de se empenhar mais para comprar vacinas, mas isso o próprio Eduardo Pazuello já estava tentando fazer.

Hoje conjugamos lentidão da vacinação com descontrole do contágio pelo novo coronavírus. Corremos efetivamente o risco de repetir o que aconteceu em Manaus, onde foi identificada a P1, e sermos berço de novas variantes?

O vírus sofre mutação. É o caminho natural dele. Normalmente, as mutações não vão fazer diferença nenhuma para o vírus, ou vão lhe fazer mal. De vez em quando, podem aparecer mutações que tragam vantagens para ele – qualquer que lhe permita se adaptar melhor ao nosso organismo, ou conseguir se multiplicar com mais eficiência. E se surgir uma mutação assim, essa variante ganhará a corrida contra as outras linhagens do vírus, e se tornará prevalente. Claro que mutações vantajosas para o vírus são desvantajosas para nós, e o que já era ruim fica pior.

Mas essas mutações são raras. Então, por que elas aparecem? Porque temos um vírus circulando há um ano, em milhões de pessoas. E os lugares onde ele circula mais livremente são onde ele se replica mais, sofre mais mutação, e aí a probabilidade de ter uma mudança que traga vantagem, por mais rara que ela seja, fica maior, porque é uma questão numérica. Se você tem um vírus se multiplicando em milhões de pessoas ao mesmo tempo, essa probabilidade de ter um evento raro se torna relativamente comum.

Hoje, então, estamos no pior dos mundos?

O pior dos mundos seria se não vacinássemos. Mas estamos vacinando pouco, devagar, e não estamos implementando outras medidas de contenção. Então podemos, sim, estar criando no Brasil um grande celeiro de variantes do vírus. Repito: qualquer um que já trabalhou em um laboratório de microbiologia sabe que, se você tem condições ideais para vírus ou micro-organismos se multiplicarem, eles vão sofrer mutações. E estas mutações podem trazer alguma vantagem seletiva para eles. Então é o que estamos observando no Brasil e continuaremos a observar. Não é para ficar histérico por isso. Mas podemos, sim, dar o azar de aparecer uma variante que tenha um escape completo de vacinas, coisa que não aconteceu até agora. Por enquanto, tivemos no máximo escapes parciais. A única maneira de evitar isso é fazendo medidas de prevenção e vacinando.

A adaptabilidade das vacinas a novas variantes é motivo de preocupação?

Tecnicamente, não é difícil adaptar vacinas de terceira geração, que são as de RNA e as vetorizadas, pois só precisa trocar uma sequência genética. A Moderna já está fazendo isso, adaptando a plataforma para abarcar a sequência genética das novas variantes. Mas não deveríamos contar com isso. Essa adaptação não será necessária se conseguirmos vacinar rapidamente e em massa. É uma estratégia que é bom ter na manga, mas, se conseguirmos fazer a lição de casa, não vamos precisar dela.

Vemos governadores e prefeitos intensificando medidas de isolamento quando o sistema hospitalar já está praticamente colapsado. Não é tarde para um lockdown?

Lockdown é a única coisa que resolve agora, pois no curto prazo não teremos vacina na quantidade suficiente para impactar no número de casos de hospitalização e mortes. O aumento da disponibilidade de vacinas só acontecerá do meio do ano em diante. Estamos com o sistema de saúde colapsando e, se continuarmos assim, colapsaremos o sistema funerário também. Não é mais momento de discutir os impactos de um lockdown na economia. O que vai afetar a economia é o Brasil se tornar pária no mundo. Isso sim vai afetar as relações internacionais, de turismo, geopolíticas, econômicas e sociais. Não podemos correr o risco de se tornar pária global por não termos condições de organizar um lockdown nacional de três semanas. Isso precisa ser feito, de forma organizada, com auxílio governamental. Porque tampouco é viável deixar uma população vulnerável como a nossa, com o tamanho da nossa desigualdade social, sem o devido apoio para permanecer em casa.

Governadores e prefeitos também começam a negociar a compra de vacinas fora do Plano Nacional de Imunização (PNI). É uma estratégia positiva?

Não é o melhor caminho, mas é o caminho que sobrou. O ideal seria ter, como a gente sempre teve, um programa nacional de imunizações centralizado, que recebe as vacinas compradas pelo Ministério da Saúde, que as distribui para o Brasil inteiro – aliás, com a maestria de sempre, porque nunca tivemos nenhum problema de distribuição de vacinas neste país. Se o PNI tiver vacinas, o PNI sabe fazer. Vai distribuir e vai chegar em todas as salas de vacinação do Brasil, e vamos vacinar em massa. Fazemos isso para a gripe todo ano, fazemos isso anualmente para todas as vacinas do calendário. Não tem segredo, mas é preciso ter vacina. À medida que faltam vacinas e o governo federal se recusa a comprar e fazer essa coordenação nacional, os estados e os municípios não têm outra saída. É o que eles conseguem fazer. O ideal seria que os estados se organizassem para comprar diretamente das empresas e fazer a distribuição centralizada que o governo federal não fez. Cada município comprar é péssimo, vai virar bagunça, pois eles não estão equipados para isso, e provavelmente não conseguem cumprir com a legislação de compliance que as empresas exigem para vender. Agora, se é o que dá para fazer, é melhor que nada. É como o lockdown. Se os municípios e estados resolvem fazer, não terá o impacto de um nacional, mas é melhor que nada.

Qual sua avaliação sobre o novo cronograma de chegada de vacinas apresentado esta semana pelo Ministério da Saúde?

Chegamos em um ponto no qual as nossas instituições públicas, principalmente Ministério da Saúde e governo federal, perderam tanta credibilidade que a gente não consegue mais acreditar em comunicados. Todos da comunidade científica têm ficado bastante surpresos. Vamos esperar para ver os contratos assinados – da Pfizer, da Janssen, mesmo da Moderna – para saber quanto efetivamente estamos comprando de vacinas e quantas doses vão chegar ao longo de cada período.

Especialistas citam que o país poderia ter tido um papel relevante no controle do novo coronavírus, até fabricando sua própria vacina, como citou o ex-ministro Alexandre Padilha em conversa com o Blog. Perdemos definitivamente esse bonde, ou ainda há chance de o Brasil se posicionar – seja para desenvolver um imunizante no caso de a Covid-19 se tornar endêmica, ou se preparando para uma próxima pandemia?

Não está tudo perdido. Mas é preciso planejamento para transformar a ciência numa política de Estado, e não vejo isso acontecendo agora. Não existe nenhum interesse político neste governo para investir em ciência, educação ou saúde. Teoricamente, no Brasil temos competência acadêmica de nossa comunidade científica para formar um sistema favorável ao desenvolvimento de insumos, imunizantes, produtos. Mas para que isso aconteça, precisamos criar um ecossistema. A academia precisa de incentivos para ter parcerias com indústrias, com o terceiro setor, e assim criar esse ambiente favorável ao desenvolvimento de produtos, o que não existe no Brasil.

Nossa ciência, embora seja de excelente qualidade, morre na publicação. Trabalhamos muito bem, desenvolvemos conhecimento, mas dificilmente desenvolvemos produto no Brasil, principalmente na área de biotecnologia. Isso demanda parcerias com indústria. E mesmo nossas plantas vacinais nacionais, no momento, estão comprometidas com produção relacionada aos acordos internacionais que foram feitos para envasamento e, posteriormente, transferência de tecnologia (com a Sinovac, pelo Instituto Butantan, e com Oxford/AstraZeneca, pela Fiocruz). Então, em um futuro próximo, essas plantas não podem ficar comprometidas com produção de vacina nacional, pois não têm espaço suficiente para isso.

Teria sido muito bom investir numa vacina brasileira, de vírus inativado como a Coronavac, mas que fosse desenvolvida pelo Instituto Butantan desde o início, sem necessidade de acordo com multinacional chinesa. Mas isso não foi feito, porque não existe esse sistema de incentivos no Brasil, e o financiamento para isso, em um momento de pandemia, precisaria ter vindo diretamente do governo federal. No restante do mundo, esse desenvolvimento demandou um financiamento robusto que foi fruto de parceria com governos. Não teria sido possível ter vacina da Pfizer, da Moderna, sem uma parceria entre indústria e governo (no caso, dos Estados Unidos) para um investimento extremamente robusto. Para isso ter acontecido no Brasil, precisaríamos ter investido no desenvolvimento de vacinas nacionais em fevereiro de 2020, mas não o fizemos. E aí começa-se 2021 com o ministro Marcos Pontes (da Ciência e Tecnologia) dizendo que agora vai investir R$ 5 milhões ou R$ 6 milhões em vacina nacional. A quantia é ínfima, e não é assim que se faz vacina. Como se diz em inglês, “too little, too late”.  Vacinas desenvolvidas no Brasil serão bem-vindas? Sim, mas para daqui um ano, dois, pois com certeza quando a Covid-19 se tornar endêmica, se precisar de vacinações periódicas, vai ser muito bom termos nosso próprio imunizante. Mas lembrando: não é só desenvolver cientificamente o imunizante. Quem vai produzir? Isso é algo que precisa ser bem-planejado para o futuro, para que essas iniciativas não morram na praia, o que seria um absurdo, pois são boas iniciativas. E para isso é preciso uma mudança de postura nas nossas instituições públicas, para que a ciência brasileira se torne prioridade do Estado. Mas isso não vai acontecer em um governo como o de Bolsonaro.

O Instituto que preside tem como objetivo a defesa do uso de evidência científica nas políticas públicas, e a partir de quarta-feira (17/3) irá presidir um congresso internacional sobre o tema. Qual será o foco desse evento online?

Será o primeiro congresso mundial sobre pensamento científico. Vamos debater justamente as questões científicas que permeiam decisões governamentais, como vacinas, aquecimento global, medicina alternativa, biotecnologia de alimentos. São questões que são reguladas de formas diferentes nos diversos países e nunca conversamos como esses aspectos da ciência são encarados pelas sociedades locais, quais as dificuldades. Então, buscamos essa parceria com o Aspen Institute, dos Estados Unidos, para reunir cientistas e comunicadores de mais de 30 países e discutir como lidar com a comunicação dessa ciência que é tão sensível para a formulação de políticas públicas que afetam o mundo inteiro.

 

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