Como a forma de olhar a inflação pode colaborar para o debate sobre os juros básicos

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Há dois anos e meio a inflação virou o calcanhar de Aquiles das famílias no Brasil e no mundo, e banqueiros centrais e mercado debatem qual a dose certa para combatê-la sem deprimir a atividade econômica mais do que o necessário. O princípio básico é acompanhar a evolução dos preços e projetar quanto de juros básicos será necessário para levar a inflação de volta à meta em um horizonte determinado de tempo.

Nesse caminho, uma fonte de discrepância pode estar contida no próprio índice oficial de preços ao consumidor, que mede a temperatura da inflação. André Braz, superintendente adjunto para Inflação do FGV IBRE explica por quê. Normalmente, toda vez que o preço de um produto sobe mais do que a inflação média, seu peso dentro na composição do índice - seja o IPCA do IBGE, seja o IPC da FGV -, aumenta. Quando isso acontece, entretanto, o indicador não capta o comportamento racional do consumidor de cortar ou substituir os produtos que encareceram mais, em busca de preservar seu poder de compra. Quando, por exemplo, uma pessoa deixa de comprar tomate quando esse está caro, ou substitui a carne vermelha por outra proteína quando há forte aumento de preços, o peso do produto preterido se reduz em sua cesta de consumo ao invés de aumentar, como prevê o índice de preços. “Com isso, a inflação de fato observada pelas famílias tende a ficar menor do que o que o IPCA ou o IPC capturam, pois estes índices não conseguem se ajustar de forma tempestiva para se adequar a essa mudança operada pelo consumidor”, diz  André Braz, superintendente adjunto para Inflação do FGV IBRE. Essa incapacidade de adaptação se dá porque o cálculo de quanto cada produto e serviço representa no orçamento das famílias é feito a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, que tem sido atualizada, em média, a cada seis anos.

Diferença entre IPCA e IPGF, %, no acumulado 2000-2022


Fonte: FGV IBRE.

Para capturar essas diferenças com mais celeridade, este mês o FGV IBRE lançou o Índice de Preços dos Gastos Familiares (IPGF). A construção desse novo indicador foi possível graças à ajuda dos economistas que calculam o Monitor do PIB, do FGV IBRE, que atualizaram esses pesos da POF com base no  Sistema de Contas Nacionais Trimestrais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Utilizamos a estrutura de ponderação que vem na tabela de recursos e usos, ajustando essa informação para a frequência mensal. Como a série mais recente que tem o dado desagregado por produto das famílias é de 2020, fazemos estimativas a partir da base de dados com a qual calculamos o Monitor do PIB, usando a informação de pesquisas conjunturais mensais, compatibilizando-as com a série de 2020”, explica Juliana Trece, economista do Núcleo de Contas Nacionais do FGV IBRE.

Variação em 12 meses, em períodos selecionados


Fonte: FGV IBRE.

Braz explica que, diferentemente de outros índices, o IPGF não serve como indexador, já que a cada revisão do PIB ele também deve ser atualizado. “Mas ele pode trazer uma importante colaboração para o debate em torno da política monetária, do ritmo de redução da taxa básica de juros, lançando luzes a questões como o nível de espalhamento da inflação e seu ritmo de desaceleração”, afirma. Ele ressalta que o IPGF é inspirado no Personal Consumption Expenditures (PCE), usado pelo FED desde 2012 como referência no debate sobre o regime de metas de inflação. “No momento atual, em que há essa forte preocupação sobre a desancoragem das expectativas em torno da inflação, o IPGF pode trazer um importante aporte, indicando como de fato a inflação está afetando o custo de vida das famílias”, diz.             

Alguns exemplos observados desde a pandemia são ilustrativos da diferença que o IPGF pode captar em relação ao IPCA. “No período de maior rigidez das medidas de isolamento, em que as pessoas não podiam viajar,  o peso da passagem aérea, que no IPC é em torno de 0,5%, ficou em 0,05% no IPGF, praticamente zerou”, diz. Por sua vez, fatores como a insegurança das famílias quanto a riscos de desabastecimento, estimulando a estocagem, o impacto do auxílio emergencial e da alta do preço das commodities agrícolas levaram o peso dos alimentos a ficar acima do observado no índice tradicional. Enquanto em junho de 2020 a despesa com alimentos comprometeu 14% da renda das famílias segundo o IPCA, pelo IPGF esse peso era de mais de 18%. "Depois desse período mais crítico, esses pesos começaram a se ajustar e hoje apresentam peso similar”, diz.

Outro fator que contribui para as diferenças na variação entre o IPCA e o IPGF é a distância temporal destes em relação às atualizações da POF. Quando está mais próximo de uma atualização da POF, o IPGF chega a ser até mais alto que o IPCA. Nos primeiros 12 meses após a atualização de 2017/18, por exemplo, o IPGF chegou a ficar quase 1 ponto percentual acima do IPCA (0,97 pp). Quanto mais distante da última atualização da POF, mais o IPCA se descola do IPGF para cima, sendo a maior distância verificada até agora, levando em conta também os 12 meses mais distantes da revisão da Pesquisa, de 1,01 ponto percentual.

Comparação entre os primeiros e últimos 12 meses de vigência de cada POF 
Diferença do IPCA em relação ao IPGF, em pontos percentuais


Fonte: FGV IBRE.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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