Com o reconhecido avanço do sistema brasileiro de pagamentos e financeiro no ambiente eletrônico, por que investir no real digital?

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Nos últimos anos, uma centena de países começou uma corrida para desenvolver uma versão digital de suas moedas nacionais, explorando as tecnologias e o universo dos criptoativos, mas mantendo a garantia de seu lastro. Em geral, os objetivos de cada um ao iniciar esses planos foram buscar soluções mais vantajosas a demandas práticas como pagamentos por atacado – operações entre bancos – e pagamentos instantâneos – como é o caso da China, cujo projeto piloto que está em vigor supera a população brasileira, com 270 milhões de carteiras (wallets) ativas.

Mas para um país como o Brasil, que já conta com instrumentos reconhecidamente eficiente para endereçar essas demandas – o Sistema de Transferências de Reservas (STR), que existe desde 2003 e, no caso do pagamento instantâneo, o PIX, que se tornou caso de estudo internacional –, quais as vantagens de migrar para o ambiente digital? 

“No nosso caso, até se poderia apenas incorporar algumas características ao ambiente eletrônico e esquecer o digital. Mas isso apenas postergaria a tarefa de lidar com ativos digitais”, afirma o economista do Banco Central Fábio Araújo. Em recente apresentação no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Araújo, que coordena a iniciativa do real digital no BC, ressaltou a importância que diversos bancos centrais no mundo estão colocando no desenvolvimento de CBDCs (moedas de banco central, na sigla em inglês), bem como no avanço de regulações no campo de ativos digitais. “Christine Lagarde (presidente do BC Europeu), chegou a declarar que, se os BCs não agirem nessa frente, poderão perder seu papel de ‘âncora’ do sistema financeiro adiante”, destacou.

Tal como havia contado à Conjuntura Econômica, (Leia aqui a matéria), Araújo ressaltou que as aplicações para o real digital que começam a ser testadas buscam fomentar novos modelos de negócio. “Canadá e Coreia do Sul também têm desenvolvido projetos nessa linha”, diz.  O ponto de partida, no caso brasileiro, não é eliminar a intermediação dos bancos na negociação do real digital – algo que a tecnologia permitiria fazer. Ele lembra que a captação de recursos e a concessão de crédito são atividades bancárias intimamente casadas, e cuja alteração poderia implicar consequências importantes para o sistema. “O BC não tem vocação de prestar serviços de varejo diretamente”, disse. A ideia, apontou Araújo, é que o real digital sirva de instrumento para ampliar a democratização do sistema financeiro abrindo o acesso a tecnologias como dinheiro programável, smart contracts, liquidação de internet das coisas, dando sequência a uma agenda que o BC vem trabalhando há alguns anos.  Como? Entre os bancos já há caso, por exemplo, de operações com debêntures tokenizadas, que poderão ser negociadas com real digital. Outro exemplo: “Imagine que você tem uma aplicação em um fundo de investimento, um CDB, e ficou sem reserva para uma compra maior que precisa fazer. Dentro dessa tecnologia digital, você poderia usar parte desse ativo, que está tokenizado, em garantia pegar um empréstimo e honrar o pagamento que precisa fazer. Ou seja, esse ambiente reduz o custo operacional, permitindo a uma pessoa física realizar uma operação compromissada.”

Marcos da evolução do sistema de pagamentos


Fonte: BCB.

Entre os projetos que farão testes no Lift Challenge - laboratório de inovações realizado pela Fenasbac em parceria com o BC -, estão propostas de finanças descentralizadas como de financiamento para pequenas empresas agrícolas, câmbio entre países e registro e validação de transações (entrega contra pagamento) de automóveis e imóveis. “Há uma grande variedade, liderado por empresas que vão desde bancos a companhias de tecnologia, de solução de pagamentos e de criptomoedas”, citou.  

No encontro, Araújo ressaltou que o avanço de uma moeda digital não deverá levara a implicações na condução da política monetária, mas reconhece que ainda é preciso testar os efeitos de um aumento do dinamismo no processo. Para a Conjuntura Econômica, o economista do BC já havia ressaltado que essa tecnologia pode prover mais liquidez a ativos hoje menos líquidos, a velocidade com que a moeda circula na economia tende a aumentar. “Achamos que as relações econômicas vão mudar um pouco, mas que não será uma mudança de natureza, mas de intensidade. E buscamos mapear quais seriam essas mudanças a partir de modelos econométricos que desenvolvemos”, afirmou.  

Inovação no sistema financeiro


Fonte: BCB.

Araújo também citou o desafio, em nível global, que o avanço de moedas digitais nacionais traz consigo, para que haja integração de sistemas entre países para pagamentos transfronteiriços. “Nesse sentido, o maior problema não é quanto à tecnologia, mas regulatório, implicando de acordos internacionais”, diz, citando que no âmbito do G20, no BIS e no FMI se discute a criação de uma plataforma global para gerir esse tema. 

A lista de desafios não é pequena: de tecnologia, segurança e, no caso brasileiro, até de mandato do próprio BC para a emissão do real digital, já que este não está claro em lei, podendo demandar uma nova lei. A estimativa do economista é que o real digital será popularizado a partir de 2025. “Até lá, entretanto, muitos atores estarão envolvidos em testes e adaptações tecnológicas, e teremos algumas entregas”, diz. 

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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