China e os conflitos em Gaza e Ucrânia: “há interesses diferentes nessas vertentes geopolíticas”

Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV IBRE

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Enquanto o presidente Joe Biden tem apostado em alimentar uma narrativa de interligação entre os conflitos Israel-Hamas e Rússia-Ucrânia, contra a qual os Estados Unidos seriam a única potência capaz de lutar, a China tem interesses diferentes em cada conflito, mas com um objetivo adicional de se colocar como força alternativa, quebrando a histórica polarização entre Rússia e EUA. “É uma posição indireta, de se firmar no imaginário geral como a potência fora da oposição entre americanos - que, no caso do conflito no Oriente Médio, representada com Israel e Arábia Saudita - e russos, cujo lado é representado por Síria, Irã e um pouco pelo Líbano”, descreve Livio Ribeiro, pesquisador do FGV IBRE

Ribeiro lembra que, no caso Rússia-Ucrânia, a aliança dos chineses com os russos não é uma união “até às últimas consequências”, prevalecendo o pragmatismo quanto aos ganhos que o país tem do ponto de vista comercial. Em 2022, ano de eclosão da guerra, o comércio entre China e Rússia aumentou 34%. Este ano, no acumulado até agosto, as trocas entre ambos os países já haviam crescido 32% em relação ao mesmo período do ano anterior, com ampla vantagem para os envios chineses. Enquanto as exportações da China aumentaram 63% em relação aos oito primeiros meses de 2022 - chegando a US$ 71,8 bilhões -, as importações chinesas da Rússia cresceram 13,3%, para US$ 83,3 bilhões. “Já caso do conflito Israel-Hamas, apesar de a China a princípio ter uma posição mais isenta, é de seu interesse colocar água na fervura caso o conflito se espraie”, lembra Ribeiro. Ele destaca que uma convulsão no Oriente Médio que ultrapasse as fronteiras circunscritas em Israel colocaria em risco o tráfego no Estreito de Ormuz, canal que conecta o Golfo Pérsico e o Oceano Índico por onde hoje escoa mais de um terço da produção mundial de petróleo.

Para Ribeiro, análises que levantam preocupações com o menor cuidado dos Estados Unidos com a potência asiática diante dos atuais conflitos internacionais desmerecem o equilíbrio geral nos cálculos americanos, que permitem olhar sob uma perspectiva menos conjuntural. “Basta lembrar, por exemplo que os Estados Unidos mediaram os Acordos de Abrãao”, citou, assinados em 2020 entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein visando à estabilidade da região, ao qual se somou posteriormente Marrocos, firmando um acordo de normalização com Israel. “Um bolsão de segurança no Oriente Médio não favorece apenas a paz mundial, mas a desmobilização de ativos americanos na região, que poderiam ser transferidos para  Ásia, por exemplo”, cita. 

Quanto à disputa de influência de ambos países na América Latina, Ribeiro reconhece que há avanços significativos chineses em parte da região, especialmente na América do Sul voltada ao Oceano Pacífico. “Vale lembrar, entretanto, que é uma ampliação concentrada na escala econômica, muito menos política ou de soft power”, afirma. Entre os destaques mais recentes estão o anúncio de negociações de investimentos chineses no chamado triângulo sul-americano do lítio, formado por Argentina, Chile e Bolívia, que responde por mais de metade dos recursos globais do metal, especialmente importante na fabricação de carros elétricos. No caso do Chile, além de anúncios de investimento direto - como o do grupo Tsinghan, que pretende injetar US$ 233 milhões em um pólo de produção em Antofagasta - há acordos de venda do minério a preços preferenciais com mais de uma montadora. “De qualquer forma, não é possível interpretar a região de forma homogênea”, diz Ribeiro. “Há uma fatia da região produtora de petróleo, em que os Estados Unidos ainda mantém o poder de ligar e desligar o botão de conexão conforme seus interesses de curto prazo”, diz, citando a recente decisão dos Estados Unidos de aliviar as sanções impostas à Venezuela, garantindo aumento da oferta do petróleo venezuelano no mercado global. “Não houve qualquer aceno concreto do presidente Nicolás Maduro que garanta eleições democráticas no país, mas houve interesses maiores”, afirma.

Ribeiro reforça que essas relações de interesses são um malabarismo no qual nem todos os pratos rodarão na mesma velocidade. “Também é preciso lembrar que, apesar de a promoção de empresas chinesas na região - o que inclui o Brasil - ser significativa porque o delta é grande, para a China não tem o mesmo peso. Esses investimentos são infinitamente menos relevantes que toda a linha da Rota da Seda do Sudeste Asiático, passando pela Ásia Menor”, diz.

Foto melhor, mas o filme não muda

Ribeiro também comenta os resultados da economia chinesa no terceiro trimestre, de 4,9% em termos interanuais, acima do estimado pela mediana do mercado. “É um resultado que dá mais tranquilidade para que o PIB feche o ano na casa de 5%, e que comprova que o excesso na leitura pessimista observada entre muitos analistas sobre o rumo da atividade no país”, afirma, ressaltando diagnóstico feito em entrevista anterior ao Blog (leia aqui). A partir de indicadores produzidos pela BRCG, ajustados sazonalmente, o pesquisador destaca que em relação ao trimestre anterior observa-se a indústria manufatureira crescendo 1%, a construção civil 0,5%, e dentro dos serviços há destaque para atividades como serviços comerciais (alta de 4%) e transporte e armazenagem (2,1%). “Apesar de agosto ter sido bom para a atividade em geral, ainda permanecem sinais de fraqueza no setor terciário, com muitos resultados negativos na margem - como atividades imobiliárias, com -2,8% e acomodação e alimentação, com -1,1% - o que demonstra um crescimento ainda bem mais instável e errático do que antes da pandemia”, conclui.

 


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