“Acho que o desafio da inflação será maior do que o mercado espera”

Guilherme Mercês, diretor de Economia e Inovação da CNC

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Em julho, 78% das famílias brasileiras estavam endividadas e 29% tinham alguma conta ou dívida com atraso de pagamento, de acordo à Pesquisa de Endividamento e Inadimplência ao Consumidor (Peic), da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), destacada na coluna Em Foco. Em conversa para o Blog, Guilherme Mercês, diretor de Economia e Inovação da CNC, ressalta que endividamento e inflação altos devem constranger o impacto do aumento do benefício do Auxílio Brasil e o crescimento econômico. E alerta que é preciso dosar o otimismo em relação à desaceleração do IPCA.

Quais as perspectivas para os indicadores de inadimplência no fechamento do semestre, levando em conta o aumento do Auxílio Brasil - que beneficia a parcela da população onde a inadimplência é maior - e, por outro lado, uma conjuntura que se estima mais difícil do que no primeiro semestre do ano?

Medidas de auxílio à renda, juntamente com a recuperação do mercado de trabalho, têm explicado essa melhora do nível de atividade observado na primeira metade do ano, com surpresa positiva para o comércio e os serviços. Mas, assim como isso é verdade, o elevado nível endividamento tem sido entrave para uma recuperação econômica mais consistente e, principalmente, mais duradoura. Em julho, o endividamento chegou perto de 80% das famílias e isso preocupa, pois é um forte crescimento se comparado ao nível de antes da pandemia, em torno dos 60% a 65%. E  especialmente diante de um cenário de forte aumento da taxa de juros, com a Selic saindo de 2% em 2020 para os atuais 13,75%. Com isso, o custo do crédito aumentou muito para famílias já muito endividadas. Na prática, isso significa um aperto muito grande do orçamento familiar, da renda disponível. E a esse elevado endividamento, com custo alto, soma-se ainda uma elevada inflação. Então, o orçamento das famílias muito apertado, o elevado endividamento e a inflação constrangem de certa forma o impacto das medidas de auxílio e contrabalanceiam o crescimento em 2022. Por isso, não apostamos que o PIB passe de 2% este ano.

Em nossa agenda de trabalho, temos enfatizado as pesquisas relacionadas ao endividamento das famílias. Consideramos que é um grande problema do país hoje, e tem que estar no radar especialmente no contexto de altas taxas de juros. Por exemplo, percebemos nas últimas pesquisas que as famílias estavam se endividando muito no cartão de crédito - chegando a 88,8% do total dos endividados em abril. E que os juros altos as têm levado a buscar créditos mais baratos, como carnês de lojas e crédito pessoal, e  à inadimplência em contas da casa, como de luz.

O IPCA registrou queda em julho, mas analistas apontam a preocupação com a composição dessa queda, concentrada em energia e combustíveis, mas ainda forte em setores como serviços. Considera que haverá dificuldade para uma desaceleração mais disseminada dos preços? 

Podemos separar a inflação em dois momentos. Um que vai até o primeiro trimestre de 2022, em que podemos caracterizar a inflação brasileira como tipicamente importada, porque os bens comercializáveis estavam persistentemente com uma inflação mais alta do que o IPCA global. Isso reflete todos esses choques que vemos no mundo, por conta da guerra e da pandemia: de oferta de alimentos, de energia, e relacionado à questão da infraestrutura de forma geral, à cadeia de suprimentos, à tecnologia. Depois do primeiro trimestre, especialmente a partir de maio, é que começamos a enxergar a inflação dos não comercializáveis ascender de forma muito forte. E os não comercializáveis são basicamente aqueles itens relacionados a salários, e nisso estamos falando muito do setor de serviços, que é intensivo em mão de obra. E o que aconteceu no segundo trimestre pareceu ser uma grande virada. Veja, no Brasil, as negociações coletivas, os acordos sindicais entre sindicatos laborais e patronais estão tipicamente concentrados entre abril e maio. E quando esses sindicatos se sentaram à mesa para negociar salários, estavam diante de uma inflação perto de 12%. Mais de 60% desses acordos coletivos foram negociados iguais ou acima da inflação, e a partir de então você tem uma subida muito forte da inflação dos não comercializáveis. Ou seja, aquela inflação acima de dois dígitos com a qual convivemos em 2021 e até o primeiro tri de 2022 contaminou os salários, a inflação dos serviços - que hoje está rodando próximo de 11% -, trazendo um componente inercial.

Considera excesso de otimismo do presidente do BC ressaltar que no Brasil o mercado precifica uma baixa de juros já para 2023?

Acho que o desafio será maior do que o mercado espera. Basta observar as expectativas do início do ano, quando o mercado apostava em uma inflação em 2022 próxima de 5%. As expectativas para o próximo ano tendem a ser revistas para cima, porque quando olhamos para os não comercializáveis, em termos de inflação esta tende a se mostrar resistente. O que podemos esperar de notícias positivas da inflação, se vierem, chegarão do ambiente externo. Ou seja, de deflação de alimentos e energia, após o overshooting por conta da guerra.

Com uma deflação de alimentos e energia, podemos esperar uma inflação menos dura para a camada de baixa renda?

Sim, na medida em que essa inflação externa é muito concentrada em alimentos, além da energia elétrica, tem hoje registra queda significativa por conta ICMS, assim como nos combustíveis. Acho que a grande questão aqui é qual o custo que essa inflação está gerando para as empresas. Porque se a gente fala de uma inflação de salário acima de 8%, estamos dizendo na prática que todas as empresas estão somando um 14⁰ salário à sua estrutura de custos. E isso obviamente traz impactos financeiros significativos que reduzem a capacidade de recuperação desses negócios.

Quais as perspectivas da CNC para o PIB de 2022 de comércio, serviços e turismo?

No comércio varejista, o que observamos até agora foi um retorno forte de itens relacionados à volta ao convívio social, com destaque para têxtil e de vestuário, por exemplo. Por outro lado, itens de maior valor agregado ainda estão em queda, especialmente materiais de construção, que tem a ver obviamente com despesas mais elevadas, e móveis e eletrodomésticos. O retorno dos serviços está calcado em dois segmentos essenciais: os chamados serviços prestados às famílias, também muito relacionados ao retorno da movimentação social que foram prejudicados na pandemia, e os serviços relacionados a transportes de forma geral. No turismo, vemos uma retomada mais consistente, ainda que o preço das passagens aéreas, com alta de quase 80% nos últimos 12 meses, se mantenha como um entrave para um aumento maior. Nossas projeções de crescimento para 2022 são de 1,7% para o comércio, 2,5% para serviços e 4,3% para o turismo.

Como avalia o ambiente macroeconômico brasileiro no agregado?

Vejo o momento atual, especialmente neste segundo semestre, com muitas características parecidas com o segundo semestre de 2002, há exatos 20 anos, quando tínhamos inflação e juros elevados, e um mundo bastante complexo: passamos pelo 11 de setembro, havia a crise argentina… Era um mundo onde a geopolítica estava muito conturbada, os preços elevados, e uma turbulência política nacional muito grande. Mas em 2003 o governo conseguiu organizar as contas públicas e a política econômica e a partir daí o Brasil viveu, talvez, uma de suas melhores décadas, aproveitando que os preços relativos o favoreciam. Hoje temos um mundo conturbado, um ambiente político conturbado por conta das eleições, juros altos, inflação elevada e crescimento baixo. Mas entendo que a partir de 2023 o Brasil pode, com um bom desenho de políticas públicas, uma boa política econômica, aproveitar a alta de preços de commodities, especialmente em energia e alimentos, setores em que o Brasil é um país diferenciado no mundo. E também se transformar em uma grande opção para o investimento direto estrangeiro, na medida em que o Leste Europeu todo deixou de ser uma opção por conta da guerra na Ucrânia.

Quais setores têm potencial de atrair esses investimentos?

Diria que o maior deles, sem dúvida nenhuma, é o de infraestrutura de forma geral. É onde o Brasil ainda tem muitos gaps e pode oferecer retornos significativos aos investidores. Tivemos reformas importantes, como o marco do Saneamento, a nova Lei do Gás, e acho que há muitas perspectivas favoráveis para o Brasil atrair esses investimentos.

Em que o Brasil precisaria avançar para garantir essa atratividade?

A perspectiva fiscal é o grande pilar de sustentação de qualquer política econômica. O BC tem feito seu papel, mas acho que é preciso uma forte sinalização de comprometimento com o equilíbrio da dívida e a sustentabilidade das contas públicas. Além disso, sem dúvida precisamos voltar a discutir duas grandes reformas: a administrativa, que diz respeito à eficiência do Estado e à dinâmica da dívida e, na sequência, retomar a reforma tributária, especialmente com foco na simplificação.

Há quatro meses está à frente da diretoria de Economia e Inovação da CNC, sob um contexto de forte mudança de comportamento social e de padrão de consumo, observada desde o início da pandemia, e graças aos avanços tecnológicos. Quais desafios identifica adiante?

Sem dúvida o mundo está passando por um dos maiores momentos de transformação social e tecnológica. Temos três desafios importantes pela frente. O primeiro deles é o que já estamos vivendo, da infraestrutura tecnológica. Há uma crise de oferta global, com destaque para alimentos e energia, mas que também passa por um problema de oferta muito grande na parte de tecnologia, do qual os chips e os semicondutores são os maiores exemplos. Quando olhamos para a geopolítica mundial e identificamos que Taiwan é a grande produtora desses dois produtos, e que essa região hoje é cercada por exercícios militares chineses, obviamente isso causa preocupações. Acho, então, que o primeiro grande desafio é o da infraestrutura tecnológica, de como fazer essa virada com a atual dificuldade de oferta.

O segundo grande desafio é o da mão de obra como um todo, é aí voltamos à questão da inflação. A escassez de mão de obra para atender a essa transformação tecnológica  é um grande problema. Por exemplo, estamos observando a chegada do 5G nas capitais brasileiras, e teremos uma demanda muito grande de programadores e desenvolvedores que não estão disponíveis no mercado de forma geral (Leia também: Décifit de profissionais de TI pode chegar a meio milhão até 2025).

E o terceiro é da regulação. O mundo está mudando muito, e a regulação também precisa mudar. Quando a gente olha para o Brasil, muitas vezes vemos que a regulação dificulta transformações. Então, acho que o grande desafio aqui na CNC é tentar antecipar tendências tecnológicas e de comportamento da sociedade para que possamos sinalizar mudanças necessárias na regulação, para que esta não seja um entrave ao desenvolvimento tecnológico e econômico.

Veja, esses desafios demandam uma relação estreita entre empresas detentoras e sabedoras das necessidades, academia e governo. Isso já está acontecendo no mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, já se tem embates interessantes sobre tecnologia. Atualmente, a regulação das big techs é um dos grandes temas mundiais. Então, temos que reforçar esse tripé empresas, academia e governo para ter um bom desenho de políticas públicas nas três vertentes: infraestrutura, mão de obra e regulação de forma geral.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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