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Entrevistas 18 abr 2022
“Sem planejamento, corremos o risco de queimar a receita extra que hoje permite desonerações”
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Postado por Conjuntura Econômica
Juliana Damasceno, economista sênior da Tendências Consultoria, pesquisadora associada do FGV IBRE
Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro
Recentemente, o governo encaminhou projeto de lei ao Congresso para repassar R$ 7,6 bilhões de recursos do pré-sal - da venda dos campos de petróleo Sépia e Atapu, na Bacia de Santos -, a estados e municípios, em pleno ano eleitoral. Há justificativa para essa medida, do ponto de vista fiscal?
A intenção é fazê-lo via crédito adicional, o que deixa o repasse fora do teto de gastos. A intenção do governo deve ser a de garantir uma receita adicional para esses entes, que de fato têm sido mais sacrificados pelas medidas adotadas em âmbito federal. Por exemplo, no caso do IPI - em que o governo pretendia ampliar a redução da alíquota para 33%, mas acabou ficando nos 25% definidos em fevereiro - ele é partilhado com estados e municípios, então a bondade do governo federal foi feita também com chapéu alheio (a Instituição Fiscal Independente - IFI - do Senado calcula o impacto da redução do IPI de dezembro a março de R$ 9,5 bilhões para estados e municípios e de R$ 6,5 bilhões para a União). Além disso, existe a previsão de que, a partir de 2023, os estados comecem a perder receita devido à decisão do STF que foi tomada em cima da inconstitucionalidade de alíquotas majoradas para telecomunicações e energia. Foi um processo que começou com a decisão sobre uma ação das Lojas Americanas em Santa Catarina, e cuja modulação foi negociada para acontecer a partir do ano que vem.
O esforço do governo em aliviar o impacto inflacionário tem se dado praticamente pelo lado da receita pelo fato de que, do lado do gasto, o teto ainda é uma trava, e nesse campo já existe a pressão por uma resposta quanto ao reajuste dos servidores públicos federais. Hoje em dia, não há espaço para acomodar novas despesas. Na reavaliação de receitas e despesas da LOA divulgada em 22 de março, essa folga fiscal dentro do teto, que inicialmente era de R$ 6 bilhões, caiu para R$ 1,3 bilhão, devido à reclassificação de algumas despesas e a expansão de outras. Calculo que um reajuste linear de 5% pretendido pelo presidente custaria no mínimo entre R$ 8 bilhões e R$ 10 bilhões até o final deste ano, difícil de equacionar. Então, a escolha mais fácil para o governo hoje é mexer na receita, como foi o caso do PIS/Cofins do gás de cozinha e do diesel. A grande questão é que eles também contam com receita no bolso para melhorar o primário. Tanto é que a projeção de déficit atualizada em março caiu de R$ 76,16 bilhões (0,8% do PIB) para R$ 66,9 bilhões (0,69 do PIB). Como conseguir de fato garantir que até o final do ano teremos a receita bombando, como diz o ministro Paulo Guedes, se continuarmos nessa esteira de desonerações? Fora que esse recurso antiinflacionário via imposto não é definitivo; só podemos zerar imposto uma vez.No caso dos combustíveis, qualquer novo choque adiante demandará novos repasses ao consumidor, sob risco de falta de fornecimento, como bem apontou a Petrobras em relatório. Não se espera uma normalidade do preço do petróleo tão cedo, ainda que especialistas projetem um cenário “bem comportado”, com o preço estacionando em torno dos US$ 100 por barril. Já o câmbio, que é a outra força que joga no preço dos combustíveis, hoje está surpreendendo positivamente, mas não sabemos o que acontecerá adiante, dependendo do quadro político.
O que lhe preocupa com a proximidade das eleições?
Uma das minhas preocupações como analista é de que haja uma corrida populista, que envolva promessas que comprometam o compromisso com a responsabilidade fiscal. Mexeu-se no teto de gastos no ano passado para abrir uma brecha e já está faltando dinheiro - para reajuste de servidores, para assistir a população de forma adequada… Atualmente mais de 70% das famílias brasileiras têm dívidas, o crédito está caro porque nossa taxa de juros já chegou na casa dos dois dígitos e tende a subir mais. É um quadro social alarmante, somado a uma perspectiva de crescimento econômico baixo, com recuperação do mercado de trabalho contida. Vale lembrar que o que tem puxado a retomada do mercado de trabalho são empregos de baixa qualidade e remuneração (veja a última Carta do IBRE sobre o tema). E não é isso que nos fará ampliar a produtividade, reinserir a economia numa trajetória de crescimento sustentado. Em resumo, estamos numa situação frágil do ponto de vista econômico, fiscal e social.
Mesmo assim, agora tem sido fácil desonerar porque há receita extra. Além disso, nosso sistema tributário é extremamente complexo, então aliviar carga, em tese, dá alguma ajuda para conter a inflação, mas também alivia um pouco o lado do setor produtivo. Digo em tese porque não há garantias de que o preço será efetivamente rebaixado na ponta, para o consumidor. E por mais que o ministro Guedes afirme que a redução do IPI é questão de reindustrializar o Brasil, e não de conter a inflação, é difícil desprezar essa perspectiva quando vemos uma taxa de juros em dois dígitos
O segundo problema nessa questão é que podemos acabar fazendo mal uso fiscal desses recursos. Sem planejamento adequado,corremos o risco de queimar essa receita extra, que permite desonerações e subsídios, de forma ineficiente. A que me refiro com planejar? Pensar, por exemplo, em um subsídio que seja mais direto e progressivo, que consiga atender os que mais precisam. O ideal, hoje, seria um subsídio temporário que atendesse à população que está se endividando para comprar o básico. Essa é uma situação que pode virar uma bola de neve, comprometendo o sistema de crédito. Ainda mais diante do cenário de mercado de trabalho que temos. Além disso, temos que lembrar a dificuldade que é retirar de cena renúncias criadas com prazo para acabar. A desoneração da folha começou em 2011, há estudos do próprio governo mostrando que não cumpriu com o objetivo. Uma das promessas de campanha do presidente Bolsonaro era acabar com essa desoneração. O que aconteceu de fato? Foi renovada até 2023. Nosso histórico é de dificuldades em retirar incentivos, pois acabamos criando setores dependentes. Então, se uma medida como essa não é feita de forma planejada, técnica, acabaremos só penalizando os setores hoje beneficiados quando no futuro essa tributação voltar ao nível normal. Hoje em dia, quando os setores beneficiados alegam que demitirão em massa se a desoneração cair, eles não estão mentindo. Mas essa dependência foi criada exatamente pela permissividade dos governos em manter uma medida que não mostrou o retorno esperado. Uma redução de benefício precisa ser gradual, começando por setores em que a desoneração comprovadamente não ajudou. E ir restaurando sua capacidade. Claro que esse tema também passa por uma reforma tributária, para corrigir impostos distorsivos que também penalizam esses setores. Agora, entretanto, o importante é não ampliar esse risco por uma folga de receita, que permite ao governo ampliar esse tipo de subsídio. Adiante, o cenário de arrecadação pode não ser o mesmo. E se tivermos uma nova rodada de estresse também pelo lado do gasto, o quadro se agravará anda mais.
E comprometerá um plano de retomada econômica a partir de 2023?
Retomada de crescimento sem fiscal ordenado é mais difícil. Esse equilíbrio macroeconômico pelo qual pensamos caminhar - déficit primário zerado, inflação dentro da banda, taxa de juros em nível natural - demandarão muito mais esforço agora.
Ter a inflação como motor de ajuste não é para se comemorar, pois implica juros mais altos, que por sua vez penalizada a dívida, a sociedade brasileira, e o investimento. O mais preocupante é que hoje não identificamos um planejamento de médio/ longo prazo. Estamos preocupados com a agenda eleitoral, com altas chances de esta ser capturada por narrativas populistas com ameaça ao quadro fiscal. Veja, para 2023, o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) prevê um déficit primário de R$ 65,91 bilhões. É uma meta que analistas consideram feita sob premissas frágeis, impossível de se cumprir considerando reajuste de servidores, do Auxílio Brasil, e manutenção do teto de gastos. Para 2023, não se espera um aumento significativo de receita, os preços de commodities tendem a se estabilizar. É importante lembrar que ter boa arrecadação devido à inflação e alta de commodities não significa que tenhamos um efeito estrutural com o qual contar adiante.
No caso do aumento dos servidores federais, qual solução viável no curto prazo?
No curto prazo o panorama é complexo. O que se poderia pensar no médio/longo prazo é em um plano envolvendo a reforma administrativa, freando alguns reajustes conforme o nível do salário de entrada. Pode-se alegar que entre os servidores na ativa é um direito adquirido, mas que seja uma revisão para os novos servidores. E, com a economia a ser feita a partir dessa medida, ir ajustando as despesas de modo a garantir estabilidade nesse gasto. Há uma série de distorções que precisam ser corrigidas, e que poderiam ser atacadas com um sistema periódico de avaliação da qualidade da política pública (spending reviw). Agora, não há espaço para garantir 26% de reajuste de servidores federais de forma linear. Insisto: no ano passado, abriu-se uma brecha considerável no teto sem cortar nada de gasto, sem qualquer esforço de revisão de despesas. Precisamos recuperar o objetivo da política pública, que é o retorno social que ela promove, e cancelar gradualmente as medidas menos eficientes para liberar espaço no orçamento. Planejamento, prioridade alocativa, acontece quando o orçamento não é capturado. E não é o que vemos hoje.
O que destaca como desafio para o próximo ano?
Existem algumas bombas que precisam ser desarmadas. Boa parte, relativa ao teto de gastos. O teto perdeu tem credibilidade por não ser passível de acomodar choques. No primeiro ano de pandemia, houve a necessidade clara de que se tinha que gastar mais, e abriu-se uma janela para isso. Em 2021, entretanto, ainda tínhamos que acomodar necessidades sanitárias, e sociais do empresariado dentro do orçamento, e aí vimos que o teto era inviável. Isso culminou nas alterações que abriram mais de R$ 100 bilhões no teto que teríamos para 2022. Fizemos isso se valendo do fato de que a inflação no acumulado de 12 meses até dezembro de 2021 representou um reajuste maior do que no acumulado até junho, como na regra original. Mas não teremos esse ganho de novo. Se continuarmos com inflação alta, será um meio bastante perverso de melhorar a conjuntura fiscal, e apenas artificialmente. Pois o remédio para isso, que são os juros altos, é amargo. É perigoso rolar a dívida com o juro real na casa dos 6%. Não à toa, estamos atraindo muito capital externo. E fica cada vez mais questionável o nível de solvência da dívida pública.
Sem um plano de médio e longo prazo, não sabemos para onde vamos. Já não trabalhamos com uma projeção de trajetória de redução da despesa em relação ao PIB que calculávamos com a aplicação do teto de gastos, pois em 2021 abrimos uma brecha. Ainda há respeito pelo que sobrou dele, mas o próximo presidente terá que rever como ancorar a trajetória fiscal, e de forma totalmente diferente da que aconteceu no ano passado: com uma discussão aberta, técnica, plural, transparente, em que reconheçamos os problemas do teto até aqui. Até agora, os números apresentados no PLDO de 2023 estão associados a um nível de despesas discricionárias extremamente baixo. Ou seja, para conseguir manter o teto em pé no ano que vem, será preciso sabotar a máquina pública. E isso é inviável.
O desafio, então, será alterar o arcabouço fiscal de forma a ancorar novamente as expectativas. Em 2016/17, o país registrou um efeito de queda nos juros básicos porque em algum momento as pessoas olharam e identificaram uma trajetória de gastos a partir da regra. Mas que, como disse, já não existe.
Outro elemento que precisará ser revisto é a questão dos precatórios, pois até agora não foram definidas as regras de regularização de nenhuma daquelas medidas de encontro de contas, de negociação com possibilidade de deságio, previstas na PEC. Enquanto não andarmos com essas questões, todo precatório que está acima do teto está esperando ser pago. Se isso for acumulando ano a ano, a insegurança jurídica será enorme.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.