“Para o acordo Mercosul-União Europeia sair, não se pode reabri-lo totalmente para negociação”

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Avanços para a aprovação do acordo Mercosul-União Europeia, passados mais de 20 anos desde que ambos os blocos firmaram o compromisso de negociar um tratado que abarcasse comércio, operação e política, é bem-vindo para o Brasil e poderá beneficiar a consolidação do próprio Mercosul, afirmou nesta quarta-feira Lia Valls, pesquisadora associada do FGV IBRE. Lia, convidada a analisar o avanço da política externa do atual governo em uma série de webinars promovida pelo Sesc SP, considera que será necessário discutir questões pontuais, especialmente no campo ambiental, mas alertou que é preciso fugir da tentação de abrir muitas frentes de negociação. “Se isso acontecer, o acordo não sai”, disse.

No início de maio, o conhecimento de uma side letter preparada pelo bloco europeu - instrumento adicional em que os europeus reforçam compromissos exigidos no campo ambiental para desbloquear o acordo - provocou uma reação inicial negativa dos países do Mercosul. “Especialistas em questões ambientais não veem, entretanto, muita diferença do que consta nesse documento em relação ao que já constava do capítulo do acordo sobre desenvolvimento sustentável”, disse Lia. “O que parece meio fora do adequado é um compromisso exigido do Brasil em reduzir o desmatamento em um prazo muito curto, e isso certamente terá de ser discutido. Tento vontade política, é possível chegar em um consenso”, afirmou. A pesquisadora ressaltou que a side letter não prevê sanções caso as metas apresentadas não sejam cumpridas.

O acordo conta com grupos apoiadores e contrários de ambos os blocos, mas Lia destaca as posições favoráveis, no Brasil, de representações como da indústria e da agricultura como um passo importante para sua aprovação. “Na área agrícola, por exemplo, sabe-se que o texto não é o ideal, com a manutenção de cotas pelo lado europeu, ainda que mais amplas. Diante de uma conjuntura na qual não se pode esperar muitos avanços no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), entretanto, há uma avaliação de que é melhor garantir esse acordo do que nada”, afirmou Lia.

Além do ponto de vista comercial, Lia apontou que a aprovação do acordo também é uma forma de tanto União Europeia quanto Mercosul reduzir o peso da polaridade Estados Unidos - China que prevalece no tabuleiro global, situação destacada no artigo de Lia da Conjuntura Econômica de maio (leia aqui, na íntegra). “O ideal é que se conseguisse a aprovação até o final deste ano”, completou, reforçando o potencial de o acordo sinalizar o interesse da região em ser um global trader. A pesquisadora reforçou que essa dinâmica também implicará o avanço da integração dos países do Mercosul em vários instrumentos, o que colaboraria para a consolidação do bloco.

Felipe Loureiro, historiador, professor de Relações Internacionais da USP, lembrou no evento online que a motivação inicial da abertura do diálogo entre Mercosul e União Europeia era equilibrar a influência dos Estados Unidos na cena regional, que à época liderava a negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).  “Hoje, sob esse contexto diferente, é um avanço que beneficiaria ambos os lados”, afirmou.

Quanto à avaliação negativa do encontro de presidentes sul-americanos promovido esta semana por Lula em Brasília, devido entre outros motivos às declarações do presidente brasileiro sobre o país no campo político e dos direitos humanos, Lia considera que foi um episódio mal gerenciado que poderá ser corrigido pela diplomacia brasileira. “A reunião não chegou ao resultado esperado, mas tampouco se pode fazer disso um grande fato.O importante é que o governo mantenha o compromisso com a questão da democracia e dos direitos humanos”, afirma.

“É fundamental que a região seja capaz de dirimir conflitos, construir consensos. E para isso é preciso colocar a Venezuela junto à mesa - o que não significa, obviamente, chancelar o que está acontecendo dentro do país”, afirmou Loureiro. Para o professor da USP, é importante que a região esteja unida para evitar o risco de que temas como meio ambiente e direitos humanos sejam instrumentalizados contra os países, para fins protecionistas de terceiros. “A história das relações internacionais é marcada por casos de  instrumentalização do tema de direitos humanos para desestabilização de determinados regimes. A discussão de temas como democracia e direitos humanos tem de ser feita de forma estruturada,  mediada por órgãos multilaterais que garantam uma avaliação independente, para que a comunidade internacional tenha tranquilidade para entender que se trata de um esforço que não visa à obtenção de benefícios materiais ou geopolíticos”, concluiu, destacando que alimentar denominadores comuns entre os países continua sendo uma agenda importante. “Isso inclusive pode ajudar a construir uma solução para a grave crise humanitária que existe hoje na Venezuela, na construção de uma saída pacífica entre o governo Maduro e a oposição.”

 


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