Novo arcabouço fiscal: o problema em confundir regra de jogo, estilo de jogo e resultado
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Postado por Conjuntura Econômica
Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro
A postergação do anúncio da proposta de nova regra fiscal para depois da viagem do presidente Lula à China mantém aquecido o caldeirão de dúvidas que o mercado vem cozinhando sobre a capacidade do governo em estabelecer um arcabouço crível e eficaz no controle das contas públicas. Enquanto a esperada regra não chega, alguns economistas têm reforçado a mensagem de que, para se avaliar a nova regra, será preciso considerar o uso de lentes que não observem o ajuste fiscal apenas sob o ponto de vista do corte de gastos.
No seminário promovido pelo BNDES esta semana – que reuniu nomes como o Nobel de Economia Joseph Stiglitz –, Nelson Barbosa, diretor de Planejamento do banco de desenvolvimento, pesquisador licenciado do FGV IBRE, defendeu em sua participação que uma boa regra fiscal é aquela que aponta o resultado primário necessário diante do cenário econômico para estabilizar o fiscal sem definir como fazê-lo. “A boa regra fiscal tenta não tomar decisões políticas, permitindo implementar qualquer decisão que seja tomada pela sociedade quanto à carga tributária e o gasto público”, afirmou. “Em todas as democracias, há uma incompatibilidade entre o que as pessoas esperam receber do Estado e o que estão dispostas a pagar ao Estado. Uma boa política é capaz de arbitrar esse conflito distributivo, criar consenso que distribua essa conta por todos os agentes, bem como distribui-la no tempo”, disse, defendendo que uma proposta que proponha ajustes rápidos logo de partida fará a economia capotar e o ajuste, cair por terra. “É algo que levará no mínimo quatro anos”, afirmou, indicando que essa é a concepção presente em planos fiscais de economias desenvolvidas como os Estados Unidos depois da pandemia. “O recente Plano Biden promoveu um grande estímulo fiscal nos dois primeiros anos, com estratégia de reequilíbrio em 16 anos. No Brasil, não se pode pensar em tanto tempo, tampouco pensar que seja rápido”, reforçou.
No mesmo evento, José Roberto Afonso, articulista da Conjuntura Econômica, deixou mensagem semelhante, lançando mão de uma metáfora futebolística. “Por ansiedade de se vislumbrar um resultado, vemos uma confusão entre o que é regra de jogo, estilo de jogo e resultado. Uns preferem jogar retrancados para levar a partida à disputa de pênaltis, outros gostam de ir com tudo para ganhar de sete a zero. Mas não se pode misturar a escolha de uma política expansionista ou contracionista com o regime, as regras, que devem permitir estilos diferentes para se alcançar um resultado”, disse. Ideia similar à apresentada pelo coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV IBRE Manoel Pires na Carta do IBRE de março ao referir-se ao desenho de regra fiscal da Nova Zelândia – que, entre outras características, revisa os parâmetros fiscais a cada ciclo de governo. Com isso, argumenta Pires, a regra cabe a governos “tanto de direita quanto de esquerda”, não engessando “a forma como o ajuste deve ser feito para atender objetivos fiscais de médio prazo”.
Afonso também defendeu que a revisão do arcabouço fiscal brasileiro some um acerto de contas com o passado com uma agenda de futuro. Do primeiro grupo fazem parte a regulamentação de leis previstas na Constituição referentes, por exemplo, à fiscalização financeira e à sustentabilidade da dívida, além de normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) não implementadas. No segundo grupo entram temas como a importância da melhoria da eficiência e produtividade do serviço público através da digitalização. O economista reforçou a mensagem deixada em artigo da Conjuntura de não se separar o debate fiscal da macroeconomia como um todo, bem como não se esquecer da necessidade de contínuo aprimoramento da apuração de dados, como o do cálculo oficial da dívida pública, que hoje exclui os precatórios. E, ainda, uma concertação federativa que considere a importância de estados e municípios na execução do gasto social e dos investimentos.
Guilherme Melo, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, sinalizou no evento alguns princípios que devem guiar a nova regra, reforçando declarações do presidente Lula quanto à necessidade de reconstrução de espaço fiscal para políticas públicas como no campo da saúde, fundamentais, afirmou, para a retomada do desenvolvimento. “O primeiro papel da política fiscal é viabilizar o financiamento de políticas públicas que promovam o desenvolvimento. Se impede a viabilização destas, seu financiamento adequado, inviabiliza a construção condições para a redução da desigualdade, aumento investimento e inovação”, disse. “É preciso prestar atenção na trajetória de variáveis como receitas, despesas, resultado primário e dívida, mas não podemos perder de vista que a regra deve garantir o financiamento da política pública, a ‘anticiclicidade’ da trajetória macro em momentos desaceleração ou crescimento muito acima do potencial e, além disso, se articular, harmonizar com política monetária”, afirmou. “Política monetária e fiscal não são separadas, como se no resto do mundo as autoridades, mesmo que independentes, não tivessem um profundo senso de alinhamento para tratar a condução da política macro.”
Em sua análise sobre os caminhos mais virtuosos para a futura regra, Barbosa defendeu que esta combata a judicialização de temas fiscais e prime pela negociação, citando o modelo da política monetária quando se trata de descumprimento da meta de inflação. “Quando o Banco Central não cumpre a meta, não tem shutdown, nem tem parada súbita. O que se tem é uma explicação pela autoridade monetária, que inclui as medidas necessárias para levar a inflação de volta à meta num prazo que o BC considere necessário”, descreveu. “Acho que esse mesmo princípio, que funciona bem na nossa política monetária, deve ser aplicado também na política fiscal. Não precisamos reinventar a roda, mas aprender com o que já temos feito.”
Tanto Barbosa quanto Afonso salientaram a importância de se tirar a regra fiscal da Constituição, tal como se prevê, lembrando a inflação de alterações sofridas pela Carta em função de desequilíbrios no arcabouço fiscal. “Artigo de Élida Graziane (FGV Eaesp) mostra que, desde a criação do teto, tivemos em média uma emenda constitucional por semestre para alterá-lo. Isso deve servir de lição de que a Constituição não é lugar para esse tipo de regra, pois com isso banalizamos a Carta”, afirmou. Afonso, por sua vez, citou levantamento feito pela Consultoria do Senado Federal que aponta a existência de mais de 80 normas constitucionais referentes à condução orçamentária. “Em um segundo momento, é preciso pensar em fazer uma limpeza no texto constitucional e criar um Código Fiscal para reunir e dar consistência ao arcabouço brasileiro”, disse.
A matéria de capa da Conjuntura Econômica de março reúne mais análises sobre a revisão do arcabouço fiscal brasileiro, entre defensoras e críticas de uma redução do peso do controle dos gastos como princípio norteador da nova regra. Confira.
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