Em Foco

Como a educação pode mudar a vida

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Dos quatro filhos que minha mãe teve, só eu consegui chegar à Universidade. De uma família que alternava momentos de certo conforto financeiro a situações de grandes dificuldades, comecei a trabalhar aos 13 anos, com office boy, como se dizia na época, na empresa de doces Embaré. Minha função era entregar encomendas e receber, no escritório que funcionava na rua XV de Novembro, no centro de São Paulo, o que era pedido da fábrica.

Tudo ficava guardado num imenso armário, com portas de vidro, fechado à chave pelo gerente, um senhor obeso, de poucas palavras. Meu sonho era pode saborear as deliciosas balas de leite, embaladas em um papel transparente, que deixava a mostra a delicada cor do doce de leite.

Um dia, o senhor Silva, o gerente obeso, esqueceu a chave na mesa quando saiu para almoçar. A tentação, para um menino de 13 anos, foi mais forte. Abri o armário e fiquei tocando aqueles saquinhos que faziam uma montanha estocada no imenso armário. Uma sensação indescritível. O armário cheirava a doce de leite, um dos preferidos de minha neta Laura, hoje com 11 anos. Quando era menor, tinha uns seis ou sete anos, disse para a tia: tia Fê, gosto mais de doce de leite do que de Deus.

Mas voltando a questão daquele armário divino, não sei por que cargas d’agua o senhor Silva, depois de umas duas horas de chegar ao escritório, me chamou e disse que a arrumação havia sido alterada. Me passou uma bronca enorme, embora não tivesse tirado nada do lugar. Até hoje fico pensando como ele viu alguma desordem no armário. Mas me serviu de lição.

Depois disso, fiz de tudo. Vendi remédios. Tentei, com um grupo de amigos, abrir uma empresa de representação. Fez água em três meses. Trabalhei em banco, em empresa de cerâmica, em seguradora. Tinha que trabalhar, pois o dinheiro em casa ficava cada vez mais curto.

Um de meus amigos, o Faria – éramos um grupo de sete –, filho de portugueses, estava se preparando para prestar vestibular para o Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA, um dos mais concorridos do país. Osvaldo, outro do grupo, pensava em fazer Economia. Os demais, onde me incluía, ainda estavam meio perdidos sobre o que fazer. Nessa época, já havia sido meio contaminado pelo jornalismo, pois durante um tempo trabalhei na antiga rádio Excelsior fazendo uma resenha dos principais resultados dos jogos de futebol pelo país. Como não havia internet, sentava na frente de um imenso rádio Philips e ficava procurando as estações das principais cidades brasileiras. Tinha muita estática e queda de transmissão. Tão logo saia um gol, ia correndo para o estúdio, com um papel na mão, avisar ao locutor que entrava no ar para dar a importante notícia: “o Ibis abriu o placar contra o Sport. Uma surpresa”. O Ibis é considerado o pior time de futebol do mundo. Da cidade pernambucana de Paulista, seu mascote tem o nome de Derrotinha.

Já naquela época, apesar das grandes dificuldades, achava que deveria tentar entrar em uma Universidade. Com um preparo melhor, poderia alçar voos maiores. Meu irmão mais velho, que não tinha curso superior, penava nas rádios onde trabalhava, com salário curto. O Faria entrou no ITA. O Osvaldo, na Álvares Penteado, n capital paulista, em Economia. Fui fazer cursinho, à noite, depois do trabalho. Chegava em casa por volta 11 da noite e estudava por umas duas horas. Quando o sono batia, o que era frequente, punha os pés numa bacia de água fria para ficar acordado.

Consegui entrar na Unicamp, em Economia. Era a primeira turma montada pelo reitor Zeferino Vaz, que tinha sido reitor da UNB, de Brasília. O time de professores era de tirar o chapéu: Wilson Cano, Luiz Gonzaga Belluzzo, João Manoel, Michel Maurice Debrun, Ferdinando de Oliveira Figueiredo, Carlos Guilherme Mota, Fernando Antonio Novaes, Peter Grau, Verena Stolckle, entre outros.

Consegui emprego em um jornal, pois tinha que me manter. Como o curso na Unicamp era de manhã e à tarde, saia de lá e ia direto para o Diário do Povo, jornal que, na época, era o principal de Campinas. A jornada era dura, pois trabalhava até meia-noite. Às seis da manhã, pulava da cama para pegar o ônibus que levava até a Unicamp.

No começo do terceiro ano, recebi um convite para trabalhar em São Paulo. O dinheiro era o triplo do que ganhava. Aceitei e tentei conciliar o trabalho com o estudo. Ia e voltava de Campinas, começando a trabalhar na parte da tarde. Aguentei por seis meses. Tranquei a matrícula e não consegui terminar o curso. O que me arrependo até hoje.

Mas o que aprendi nos três anos na Unicamp me abriu as portas para ir galgando melhores empregos. Fui da equipe original que reformulou a extinta Gazeta Mercantil, por onde trabalhei por quase 27 anos, chegando a diretor regional. Mesmo sem me formar, a educação que recebi foi fundamental para conseguir que minhas três filhas tivessem curso superior. Além da educação, muito me ajudou a leitura. Muito cedo, comecei a ler compulsivamente obras de escritores russos, latino-americanos, alemães, italianos, norte-americanos. Legado que, felizmente, Sofia e Julia, duas de minhas netas, se apegaram.

Tomei a liberdade de contar esta suscinta experiência pessoal, que pode ter acontecido com muitas pessoas, para mostrar o fundamental papel da educação na vida de uma pessoa.

Trabalho da equipe de mercado de trabalho e produtividade do FGV IBRE – “Impactos da educação no mercado de trabalho” –, mostra que “na ausência da melhora da composição educacional do emprego, a informalidade do mercado de trabalho” – que é elevada no país, gerando empregos de má qualidade – “estaria num patamar bem mais elevado e o rendimento do trabalho quase não teria crescido desde 1992”.

Fernando Veloso, Fernando de Holanda Barbosa Filho e Paulo Peruchetti, autores do estudo, enfatizam que desde 1992 tem havido uma profunda mudança na composição educacional da população ocupada, com reduções significativas dos grupos menos escolarizados e aumento sistemático da participação dos grupos mais escolarizados, como mostra o gráfico abaixo.

“A melhoria da educação é fundamental para o desenvolvimento do país, pois aumenta a produtividade dos trabalhadores, facilita a criação e absorção novas tecnologias e, consequentemente, contribui para o crescimento econômico. Além disso, a elevação da escolaridade da população contribui para o aumento do salário e redução da informalidade”, dizem os autores.

Evolução da composição educacional da população ocupada no Brasil


Fonte: Elaboração própria do FGV IBRE com dados as Pnad Contínua.

O estudo dos pesquisadores do FGV IBRE aponta que que “ao longo de todo o período”, como mostra o gráfico abaixo, “o rendimento do trabalho foi maior para os trabalhadores de maior escolaridade. Em particular, entre o início da década de 1990 e o início dos anos 2000, os trabalhadores com 16 anos ou mais de estudo ganhavam, em média, quase dez vezes mais que os trabalhadores com escolaridade entre 0 e 4 anos de estudo. Mas essa diferença tem caído desde o início dos anos 2000”.

Em grande parte, a recessão que o país começou a conviver a partir de 2014 levou a uma queda de renda que atingiu todos os níveis educacionais.

Na conclusão do trabalho, os pesquisadores salientam que “tem havido um aumento da escolaridade da mão-de-obra e uma melhora na composição educacional do emprego, que teve papel fundamental na dinâmica da informalidade e do rendimento do trabalho”.

Evolução do rendimento médio no Brasil por nível educacional


Fonte: Elaboração própria do FGV IBRE com dados as Pnad Contínua.

Ver a íntegra do estudo no site Observatório da Produtividade Regis Bonelli.

Agradeço ao Paulo Peruchetti, pesquisador do FGV IBRE, pelos dados para a elaboração dos gráficos.

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Com o mundo virando do avesso como escrevi no último Em Foco, ontem revi o documentário “Ucrânia em Chamas”, da Netflix, onde durante 93 dias milhares de ucranianos defenderam, na praça da Independência (Maidan), a entrada do país na União Europeia e a queda do presidente Viktor Yanukovich, aliado da Rússia, que havia prometido isso durante a campanha, e não cumpriu. O presidente fugiu para a Rússia e novas eleições foram marcadas. Uma vitória, depois de vários mortos, feridos e presos.

A obstinada resistência, embora a situação agora com a invasão russa seja diferente, dado o poderio bélico dos russos, pode sinalizar que os ucranianos não irão se dobrar facilmente, mesmo tendo seu país dominado pelas tropas russas. O sentimento de nacionalismo, de defesa da pátria e a vontade de ingressar na União Europeia “para dar um futuro melhor a seus filhos”, como muitos manifestantes declararam no documentário, é uma fagulha que permanece acesa. A Ucrânia conseguiu sua independência em 1991 com o esfacelamento da antiga União Soviética.

Mais de 1 milhão de refugiados ucranianos saíram de seu país, principalmente mulheres, crianças e idosos. É uma crise migratória sem precedentes, que terá impactos desastrosos na vida dessas pessoas. As sanções econômicas, que estão aumentando, podem asfixiar a economia russa, afetando a população. O que pode trazer mais problemas ao presidente Putin. Mas parece difícil qualquer mudança na condução do país.

Os impactos dessa guerra, sem sentido, quando ainda estamos saindo de uma pandemia que durou dois anos, vão se espraiar pelo mundo, desde que não se encontre uma solução diplomática com rapidez. Por aqui, a inflação vai subir, acompanhada pelos juros. Há risco de falta de fertilizantes. O petróleo, que não para de aumentar, vai pressionar a Petrobras a aumentar os preços dos combustíveis. O barril do petróleo chegou, ontem, a U$ 120. Alguns analistas estimam que a defasagem do preço da gasolina no Brasil já é da ordem de 24%.

Tudo isso é uma insanidade.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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