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Alguns destaques da Carta do IBRE

Quais são os principais desafios econômicos do Brasil a partir deste ano? Um cenário de muita incerteza externa, em que a eleição de Donald Trump desponta como a maior incógnita sobre os impactos que terão as medidas que deve anunciar agora dia 20, quando de sua posse, o quadro fiscal brasileiro, cada vez mais difícil de se equilibrar, juros em alta, na contramão do que ocorre no mundo, e projeções pessimistas sobre a inflação, tornam as previsões bastante difíceis.

É sobre esse assunto que se debruça a Carta do IBRE deste mês, publicada na edição da revista Conjuntura Econômica, através de análise do pesquisador associado do Instituto, Bráulio Borges. Com texto final de Luiz Guilherme Schymura, pesquisador e diretor do IBRE, a Carta começa por fazer uma análise do quadro internacional, com foco central nos Estados Unidos, “onde a guerra comercial prometida por Trump (...) ameaça ser bem mais acentuada e abrangente do que aquela implementada em 2016-2020, com imposição de tarifas mais altas em maior número de países (incluindo o Brasil) e relativas a uma cesta mais ampla de produtos. Adicionalmente, o ambiente econômico americano e global hoje é menos propício à acomodação de um choque tarifário nas importações. A inflação dos Estados Unidos ainda se encontra algo acima da meta, e em 2016 estava abaixo. O muito acompanhado supernúcleo de serviços (exclui aluguéis) tem flutuado em torno de 4,4%, muito acima da meta de 2%. A taxa de desemprego, de aproximadamente 5% às vésperas do primeiro mandato de Trump, atualmente está em 4,2%. No início do primeiro governo do presidente eleito, a rentabilidade do título do Tesouro americano de dez anos era de 2,3%, e hoje está em 4,6%, o dobro. Há hiato do produto positivo e sinais de superaquecimento no mercado de trabalho, embora com algum alívio desde o início do ano. E as estimativas empíricas dão apoio à avaliação de repasse integral para os consumidores dos aumentos de tarifas”.

Dentro desse cenário, a Carta traz alguns pontos para reflexão relevantes:

• O impacto de uma eventual guerra comercial mais ampla e intensa no segundo mandato de Trump vai ser muito mais desfavorável do ponto de vista inflacionário, comparativamente ao primeiro mandato do presidente reeleito dos Estados Unidos. Mesmo que as ameaças comerciais não sejam totalmente concretizadas(...), a ofensiva manterá a incerteza política e econômica global acima dos níveis usuais, gerando muita volatilidade. O que tende a valorizar o dólar.

• Estudo do FMI divulgado em meados de 2023 mostra que o impacto da valorização do dólar é estatisticamente irrelevante nos países avançados, mas, no caso das economias emergentes, é negativo e bastante persistente. Em média, valorizações de cerca de 10% do dólar frente às moedas fortes tendem a reduzir o crescimento do PIB dos emergentes em quase 2 pontos percentuais (pp) um ano após a apreciação – e esses efeitos persistem por cerca de dois anos e meio.

 • A eleição de Trump aumenta o risco de se reinsuflar pressões inflacionárias, não só pela questão tarifária, mas também fiscal. Ao longo do primeiro mandato do presidente eleito, o déficit primário ajustado pelo ciclo dos Estados Unidos, de acordo com o FMI, saiu de 1,5% do PIB (em 2015; Trump tomou posse em 2016) para 3,8% em 2019, período em que a dívida pública do país se elevou em pouco mais de 4pp do PIB – ou seja, a redução de tributos “não se pagou”. O governo Biden, com política fiscal expansionista na esteira da pandemia, manteve o resultado primário nessa última faixa em 2023/24, com déficit de cerca de 4% do PIB.

• A transição energética, mesmo com o negacionismo climático de Trump, deve prosseguir (ainda que em ritmo um pouco mais lento). A razão é que a dinâmica empresarial e a ação política europeia são forças poderosas que a má vontade do presidente eleito dos Estados Unidos não tem como deter. Esse é um ponto de luz para o Brasil num cenário internacional difícil, trazendo oportunidades de exportação de energia limpa, verde e renovável.

Depois de avaliar o cenário externo, a Carta se volta para a conjuntura doméstica. Veja alguns dos principais pontos:

• Desde meados de 2020, o PIB brasileiro tem surpreendido positivamente em relação às projeções. No auge da pandemia, esperava-se que o PIB caísse entre 7% e 8% em 2020, mas a queda foi de apenas 3,3%. A partir daí, as surpresas para cima, em média de 2pp, prosseguiram em todos os anos, incluindo 2024. No ano que acaba de terminar, o crescimento, segundo o Focus do Banco Central, deve ter ficado em cerca de 3,5%, ante expectativa de alta de 1,5% em dezembro de 2023.

• Esse desempenho do PIB acima das expectativas é em boa parte explicado por outra surpresa – relativamente às projeções – ocorrida nesses anos: o gasto público federal cresceu em média 1,1 pp do PIB a mais em cada ano comparado ao consenso dos analistas um ano antes (a divisão é sobre o PIB do ano anterior, para excluir o impacto que a própria política fiscal tem sobre o PIB). As previsões foram tiradas do Prisma Fiscal, o sistema de coleta de expectativas fiscais do Ministério da Fazenda. Dessa forma, só incluem o gasto federal. Porém, como se verá adiante, o gasto dos governos locais cresceu quase explosivamente no mesmo período.

• Em termos federais, o gasto primário (sempre a preços do 3º tri de 2024, deflacionados pelo deflator do PIB) atingiu cerca de R$ 494 bilhões na média de 2018-19, mas saltou para R$ 542 bilhões na média dos trimestres de 2024. Pouco mais da metade desse aumento se deveu à expansão do Bolsa-Família, que corria em R$ 11 bilhões por trimestre em 2019 e agora está em R$ 39 bilhões por trimestre, a preços de hoje. O restante vem de várias rubricas, mas principalmente de gastos com saúde.

• A composição do aumento do gasto federal também a ajuda a explicar as surpresas do PIB, segundo Borges. Trabalho de pesquisadores do Federal Reserve (Fed, BC dos EUA) de São Francisco, publicado em setembro de 2024, estimou o multiplicador sobre o PIB da expansão do gasto do Bolsa Família como superior a +2, e com persistência por quase dois anos. O gasto federal com o Bolsa Família, que era de 0,4% do PIB até 2019, subiu para 1,5% em 2023/24. Embora o estudo mencionado se refira à expansão do Bolsa Família pré-2019, deve ser uma boa aproximação para o crescimento posterior. Assim, um gasto com multiplicador em torno de 2 teve um salto de 1,1pp de PIB, o que certamente é um forte impulso à economia.

• O crescimento recente do gasto primário dos governos regionais é ainda mais impressionante do que o da despesa federal. A partir de dados divulgados conjuntamente pelo Tesouro e IBGE, verifica-se que o gasto dos governos regionais, descontado o deflator, era de cerca de R$ 478 bilhões por trimestre antes da pandemia, e agora, na média dos três primeiros trimestres de 2024, chegou a R$ 612 bilhões. Nota-se que o gasto primário trimestral do governo federal e o dos estaduais apresentaram níveis semelhantes entre 2010 e 2019, mas, desde 2022, o valor absoluto dos gastos dos governos regionais tem superado, por uma margem considerável, as despesas primárias diretas da União.

A Carta também faz uma avaliação da política fiscal brasileira e o que seria mais adequado para o governo lançar mão para se chegar a uma sustentabilidade fiscal.

Leia a íntegra da Carta do IBRE.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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