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Um novo BNDES?

Por Claudio Conceição e Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Entre 2009 e 2014, o BNDES se agigantou, ampliando de forma significativa empréstimos, adotando uma estratégia de criação do que ficou conhecido como “campeãs nacionais”, empresas que seriam líderes em seus segmentos, com potencial para concorrer em condições de igualdade no cenário externo. Foi um erro estratégico que trouxe mais custos do que lucros para a economia brasileira.

Esse legado, de quando as torneiras do crédito foram abertas sem muito critério de avaliação de risco, ainda é um pesado fardo sobre o banco. Quando se vê na imprensa análises sobre o BNDES, via de regra são negativas. Hoje o banco tem papel central nas principais políticas do governo no campo do desenvolvimento produtivo, da transição energética e à industrialização, como a Nova Indústria Brasil (NIB), estando na linha de frente das preocupações de analistas quanto aos rumos da política parafiscal do governo federal e seus riscos para a sustentabilidade das contas públicas.

Nelson Barbosa, diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES, ex-ministro do Planejamento e da Fazenda no governo de Dilma Rousseff, e pesquisador do FGV IBRE até assumir  seu posto na instituição, há dois anos, é uma das lideranças mais empenhadas em defender as diferenças entre o que chama de novo BNDES e o BNDES de um passado recente.

Em entrevista à Conjuntura Econômica de dezembro, Barbosa enfatiza que a principal mudança está na expansão do crédito em bases sustentáveis tanto do ponto de vista fiscal, pois se espera depender menos do Tesouro, através de captação própria no Brasil e no exterior, quanto do ponto de vista de transparência e efetividade”. Onde há recursos públicos, afirma, estes estão sendo administrados de forma mais transparente, com avaliação periódica de impacto, para melhorar a alocação de recursos.

Veja alguns pontos da entrevista.

A Carta do IBRE de dezembro, que trata de riscos fiscais, cita os questionamentos relacionados à política parafiscal do governo, o que inclui o crédito direcionado do BNDES. Na avaliação dos pesquisadores do FGV IBRE, é importante para o banco tornar claro como pretende ampliar o nível de concessões – dos atuais 1,1% do PIB a 2% –, dadas as restrições fiscais do Estado, evitando surpresas quanto a essa trajetória. Como avalia essa análise?

Com os fundings que o BNDES já dispõe hoje – o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que cresce todo ano junto com a economia brasileira, e os outros existentes – garantem uma expansão da concessão de crédito pelo BNDES de cerca de 1% do PIB em 2022 para 1,5% do PIB em 2026. Para se chegar a 2%, é preciso complementar com novas captações. De onde elas vêm? Uma parte de mercado, via aumento de captação externa ou via captação doméstica com a criação desse novo título, a LCD (Letra de Crédito do Desenvolvimento), e também com a emissão de LCA (Letra de Crédito Agrícola), que o BNDES já pode fazer. O Plano Safra, por exemplo, está dependendo cada vez mais de fontes de mercado, pois os depósitos à vista não crescem em velocidade suficiente para atender à demanda do agro brasileiro. Então, tanto o BNDES como o Banco do Brasil estão usando fontes de mercado para financiar esse setor.

Outra fonte de funding adicional são os novos fundos dedicados a segmentos específicos, que é o Novo Fundo Clima – criado em 2009, reformulado em 2023 –, para infraestrutura ambiental, e o Fundo de Investimento de Infraestrutura Social, criado em agosto deste ano. Esses são recursos que o Tesouro aporta, como se fosse um FAT alternativo, menor, e ali tem um subsídio implícito, porque o Tesouro coloca uma taxa fixa abaixo de sua taxa de captação, mas é um subsídio que a gente entende que se justifica. No caso do Fundo Clima, todo mundo vê que a crise climática chegou e exige resposta e investimento imediatos; na infraestrutura social, por sua vez, o Brasil tem um déficit muito grande em saúde e educação, áreas em que se não se investir logo, perde-se uma geração. Se contabilizarmos direito as externalidades que esse investimento traz para a economia, ele mais do que se paga.

A que atribui a insegurança quanto aos limites e aos riscos que esses instrumentos podem implicar?

Talvez por comunicação, porque são assuntos que não são fáceis, e também porque as pessoas estão extrapolando coisas que ocorreram no passado, há mais de 10 anos, como se estivessem ocorrendo as mesmas coisas hoje. Mas os números mostram que não.  Acho que o governo tem o dever de ter mais eficiência na sua comunicação, e os críticos também tem um dever de ser um pouco mais atentos ao que estão falando, e evitar a paranoia parafiscal.

No ano passado, ao assumir a direção de Planejamento do BNDES, uma de suas declarações recorrentes foi a de que o BNDES não iria atrapalhar a política monetária. Na outra mão, em que medida o atual cenário de juros impacta a estratégia do banco nas frentes de captação e de disponibilizar crédito a taxas de mercado?

Aumento de juros reduz a perspectiva de desembolso em todos os bancos, privados e públicos, e no BNDES não é diferente. Nosso principal funding ainda é o FAT, que é atrelado à taxa de 5 anos do Tesouro. Então, com uma elevação da taxa de 5 anos, a gente já vê alguma redução de demanda na ponta. Mas isso é a divisão da política econômica. Cabe ao Banco Central determinar o custo do dinheiro, e os bancos se adaptam. Tentamos fazer a melhor política possível com as taxas de juros determinadas pelo BC, necessárias para cumprir a meta de inflação. É como clima: tem dia que chove, tem dia que faz sol, e você se adapta. Isso vai se refletir em um desembolso menor em algumas linhas, mas tem outras coisas acontecendo, principalmente nessa área de transição energética, de biocombustível. Dado o potencial que o Brasil tem nesse campo, estamos observando um interesse muito grande de fazer investimento no Brasil, às vezes com captação fonte internacional.

Levando em conta que no campo da transição energética há demandas envolvendo um desenvolvimento tecnológico emergente – como na área do hidrogênio de baixo carbono –, e um senso de oportunidade dada a emergência do tema, esse cenário não implicará uma demanda maior por financiamento subsidiado?

Como mencionei, o governo decidiu usar esses dois instrumentos – o Novo Fundo Clima e o Fundo de Infraestrutura Social –, justamente para dar subsídio focalizado nessas duas infraestruturas. Isso já é uma diferença em relação ao passado. Na parte que cabe ao BNDES, o Novo Fundo Clima deverá chegar à disponibilidade de R$ 40 bilhões para aprovação de crédito ao longo de quatro anos (2023-26), com o desembolso ocorrendo em 4 a 8 anos. O Fundo de Infraestrutura Social, por sua vez, deve começar ano que vem, com R$ 10 bilhões.

Os desembolsos do BNDES ao saneamento registraram um forte crescimento. Há, entretanto, a identificação de uma concentração desses desembolsos em poucas empresas, e também em poucas regiões. É preocupação do BNDES identificar formas de ampliar os tomadores?

O setor de saneamento tem tido grande acesso ao BNDES, seja via crédito, seja na organização de debêntures, e usa esse acesso para viabilizar seus investimentos. A maior parte da emissão de debêntures que a gente coordena e participa está concentrada no setor de saneamento.

Houve uma primeira leva de concessões concentradas no Sul e Sudeste, regiões consideradas de menor risco, ainda que seja um risco considerável. A primeira rodada de concessões foi feita sem um histórico para se tomar como base, então se estabeleceu um modelo, com cláusulas de reequilíbrio contratual para lidar com as incertezas, como tem acontecido. O desafio que temos é expandir o modelo de concessão para outras áreas do país onde a necessidade de investimento é maior, como no Norte e Nordeste, que registram índices mais baixos de cobertura de água e esgoto e onde não se tem a possibilidade de aumentar a tarifa muito rapidamente, porque há mais população de baixa renda. Então é preciso um financiamento mais alongado, com contrapartida pública para viabilizar esse processo.

Em entrevista com Luciana Costa, diretora de Infraestrutura, Transição Energética e Mudança Climática do BNDES (Conjuntura Econômica de junho, leia a íntegra aqui), ela citou a preocupação do banco em bancar estudo de pré-viabilidade voltado ao planejamento da mobilidade em 21 centros urbanos do Brasil, visando destravar investimento em modais, de forma ambientalmente sustentável. Há outros segmentos prioritários em que o banco identifica a necessidade de ajuda para incentivar o investimento?

Há três setores nos quais vemos essa necessidade. O primeiro, que mencionaram, é o da mobilidade urbana. Hoje falamos em eletrificação de frota de ônibus, por exemplo, mas o modelo operacional desse transporte urbano no Brasil é de concessão estadual ou municipal, com empresas privadas que normalmente são donas dos ônibus. Mas a eletrificação demanda outro tipo de planejamento, como a infraestrutura de abastecimento, além de se tratar de um ônibus três vezes mais caro que o que se tem hoje. Assim, talvez esse modelo tradicional não seja o mais adequado para essa eletrificação. Às vezes é melhor trabalhar com um modelo de leasing, em que o governo é dono do ônibus é contrata uma concessionária apenas para operá-la. Esse é uma dificuldade contratual. Em grandes cidades é mais fácil fazer isso. Na capital paulista, por exemplo, o BNDES fechou um financiamento de R$ 2,5 bilhões com a prefeitura para a compra de 1,3 mil ônibus elétricos. Mas nem todas as prefeituras do Brasil tem a mesma capacidade de fazê-lo, ainda que a demanda hoje seja por descarbonizar o transporte urbano.

Outro desafio que identificamos é no investimento em data centers. Isso requer uma oferta de energia limpa estável, que as fontes solar e eólica não conseguem garantir sozinhas. A energia renovável é importante, mas flutua, então é preciso ter investimento em estocagem, baterias ou qualquer outra tecnologia.

Na área de infraestrutura social, estamos estudando formas de expandir o modelo de PPPs de educação, já testado em alguns lugares. Há estados que já implementaram modelos mais agressivos, como no Paraná, que transferiu para o setor privado inclusive a gestão pedagógica. O que o que o BNDES faz é estruturar uma parceria em que a empresa assume construção, manutenção da infraestrutura, segurança e conectividade, e a parte de ensino, planejamento de aquisição de alimentos de acordo à diretriz nutricional, continua do estado.

Como um cenário externo mais conturbado como vemos hoje pode afetar a estratégia do BNDES?

Nosso financiamento às exportações brasileiras é basicamente de manufaturado, que é forte para a América do Norte e do Sul. Se houver aumento de tarifa pelos Estados Unidos pode afetar diretamente esse volume de vendas e nosso financiamento. Os outros efeitos são mais macroeconômicos. Quando se causa volatilidade, seja por motivo doméstico ou externo, em câmbio e juro isso nos impacta. Mas nisso o BNDES, como outros bancos, é bem conservador, fazemos hedge e estamos cobertos. Esse contexto afeta mais a perspectiva de crescimento do investimento como um todo. Como o BNDES é um banco intensivo em investimento, quando a economia cresce puxada pelo consumo o financiamento do BNDES não cresce muito; quando cresce puxado por exportação e investimento, o financiamento do BNDES aumenta. A composição do crescimento nos afeta dessa forma.

No caso das captações, as principais realizadas para o Fundo Clima não vêm governos que estão adotando medidas mais protecionistas, mas de multilaterais, como BID e Banco Mundial. E parte desses financiamentos não vem atrelada a cláusulas comerciais, mas de transição energética e sociais, que atendemos perfeitamente.

 

Leia a íntegra da entrevista de Nelson Barbosa na Conjuntura Econômica de dezembro.

 

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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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