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Postado por Conjuntura Econômica
Parte da história do país sob o olhar de Marcílio
Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro
O ano era 1931. Nascia no dia 25 de novembro, na rua Souza Lima, número 59, no Rio de Janeiro, em uma quarta-feira ensolarada, Marcílio Marques Moreira. Apressado, nasceu antes do médico chegar na casa de seus pais, Mário Moreira da Silva e Noêmia de Azevedo Marques Moreiras da Silva. O Brasil acabava de ganhar um futuro intelectual, que teve papel fundamental na história econômica e política do país, como os anos seguintes iriam mostrar.
A vida de Marcílio é digna de um filme. Herdou o DNA diplomático da família, da parte de seu tio-avô materno, José Manuel de Azevedo Marques, que foi ministro de Relações Exteriores do presidente Epitácio Pessoa, 11º presidente brasileiro, no período 1919 a 1922. Seu governo foi marcado por revoltas militares que acabariam na revolução de 1930, levando Getúlio Vargas ao governo. Seu pai também carregava o DNA diplomático, quando em 1955 assumiu o cargo de Diretor do Conselho Federal de Comércio Exterior, em um período político extremamente conturbado do país.
No livro recém lançado “O social como elixir”, editado e produzido pela Insight Comunicação, Marcílio conta a sua trajetória profissional e pessoal, onde se destaca a sua eterna defesa pelas liberdades individuais, sempre repudiando atos e ações autoritárias. Foi já pequeno que o horror por arroubos dessa natureza começou a moldar seu caráter e ações que se perpetuaram ao longo de sua vida.
Com 3 anos de idade, a família se muda para a Áustria. Seu pai era cônsul brasileiro em Viena. Como escreveu o economista Edmar Bacha no Prefácio do livro, o liberalismo que acompanhou Marcílio por toda a vida, “veio naturalmente da infância sofrida. Quando criança, enfrentou delicado quadro de saúde, dentro da atmosfera política de totalitarismo na Áustria...” Atado à cama pela doença, um reumatismo articular agudo, sem poder se levantar, envolto pelos discursos de Hitler transmitidos pela rádio BBC, Marcílio olhava pela janela e via senhoras judias constrangidas a limpar o chão. Sentiu na pele – e na alma – a lâmina iníqua do regime, quando em 1939 foi privado do atendimento de seu médico judeu e vítima da perseguição nazista”.
Após quatro meses de cama, a recuperação foi longa e dolorosa. Teve que reaprender a andar pelas mãos de seus pais, Mário e Noêmia. Aos seis anos de idade, já havia aprendido que o mundo afundaria em um período de trevas com o avanço nazista.
Enclausurado dentro de casa, foi alfabetizado em alemão gótico, bem mais complexo que o alemão tradicional. Teve aulas de português com Clarice Lispector, que morava, na época, na Europa, o que levou o pequeno Marcílio a começar a ingressar no fabuloso mundo da leitura.
A invasão da Polônia por Hitler em 1939, decretando o início da Segunda Guerra Mundial, levou o aflito pai de Marcílio a colocar a família no penúltimo navio a sair da Itália rumo ao Brasil, numa rota de fuga do avanço do nazismo. Mário, seu pai, só voltaria ao Brasil em 1940. Com o fim da guerra, a família arrumou as malas e zarpou, novamente, para a Europa, dessa vez para a Suíça, onde seu pai, a convite de Getulio Vargas, foi assumir o cargo de ministro plenipotenciário em Berna.
O livro é um misto de autobiografia e da história econômica do país, sob a ótica de Marcílio, que relata seus tempos de infância, a avidez pela leitura, a formação de uma família com fortes laços católicos, sua formação profissional, sua passagem por cargos importantes no governo e em empresas.
Uma de suas primeiras incursões na vida pública começou em 1957, quando serviu como secretário na Embaixada brasileira em Washington, onde também exerceu as funções de diretor temporário do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em 1963 foi assessor do então ministro da Fazenda San Tiago Dantas. Até o fim de 1965, foi assessor geral de Operações Internacionais do BNDE, hoje, BNDES.
Com grande preocupação social herdada, possivelmente, pela sua formação católica e pelos horrores do nazismo, quando começou o governo de Negrão de Lima no Rio de Janeiro, em 1965, já sob o regime militar, Marcílio assume a vice-presidência da Companhia Progresso do Estado da Guanabara (Copeg). A partir de 1968, vai para a presidência da Companhia de Desenvolvimento das Comunidades (Codesco), dedicada a urbanização das favelas do Rio de Janeiro. Isso seria o embrião para a tentativa de urbanização das favelas do Rio com a criação do projeto Favela Bairro, implantado pela prefeitura do Rio em 1990.
É bom lembrar que a eleição de Negrão de Lima, do PSD, e de Israel Pinheiro Filho para o governo de Minas Gerais, acabou sendo vista como uma derrota pelos militares, identificados com outras candidaturas. A resposta foi dura: foi editado o Ato Institucional nº 2 (AI-2) que, entre outros pontos, dissolvia os partidos políticos até então existentes e estabelecia a eleição indireta para a presidência da República. O governo de Negrão de Lima, transcorrido sob intensa radicalização política, terminou em março de 1971. No final de 1968, Marcílio sai do serviço público e vai para o Unibanco, onde assume a vice-presidência do conglomerado financeiro onde fica até 1983, passando a integrar o Conselho de Administração da instituição.
No livro, Marcílio lembra o período em que trabalhava para urbanizar as favelas no Rio. Cita sua experiência e amigos que fez em Brás de Pina, bairro da zona norte do Rio onde ia aos finais de semana com a família, com seu Mercedes branco, “que ninguém mexia”.
Hoje, a rotina do bairro é de crimes como assaltos a pedestres, roubos de veículos, invasões a residências e até sequestro relâmpago. Retrato de boa parte do Rio de Janeiro de hoje, com avanço do tráfico e das milícias.
A Codesco que Marcílio presidiu foi um sopro de idealismo, como diz Edmar Bacha no prefácio do livro, já que ia na contramão da ideia dos anos 1960 de que a solução para resolver o problema das favelas no Rio era o deslocamento de seus moradores para conjuntos habitacionais em bairros distantes. A Codesco atuava como mediadora entre o governo estadual e o Banco Nacional de Habitação (BNH), buscando deixar os moradores próximos aos seus locais de trabalho, integrando-os em bairros adjacentes e dando o direito de que eles escolhessem o tipo de moradia.
A arte era outro eixo que o atraia, o que o levou a ser o diretor-financeiro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, entre 1968 e 1971. Por seis anos, de 1974 a 1980, foi membro do conselho do então BNDE, hoje BNDES, zarpando para os Estados Unidos em 1986 quando assumiu a embaixada brasileira, onde permaneceu até 1991.
Quando Fernando Collor de Mello venceu as eleições presidenciais, foi chamado no dia 10 de maio para assumir o ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, onde conduziu a renegociação da dívida externa brasileira junto ao FMI. Saiu do ministério em 2 de outubro de 1992, já com o processo de impeachment de Collor, que renunciou em dezembro daquele ano depois que a Câmara aprovou a cassação de seu mandato. Foi um dos quatro processos de impeachment no Brasil: em 1955 houve o dos presidentes Carlos Luz e Café Filho e, em 2016, o de Dilma Rousseff.
Depois de sair do Ministério, Marcílio foi para outro desafio: ser subsecretário para Políticas Públicas da Prefeitura do Rio de Janeiro, na primeira administração de César Maia, onde permaneceu até 1995.
Presidiu a Associação Comercial do Rio de Janeiro de 2001 a 2005. De 2007 a 2008 foi presidente do Conselho Empresarial de Políticas Econômicas da Casa de Mauá.
Integrou vários Conselhos, como da Fundação Getulio Vargas, IBM, Coca-Cola, General Eletric, Embratel, Textron, R. J. Reynolds, Sendas, Hoechst, Novotel, entre outros.
Em 1953, Marcílio que já frequentava a ala progressista da Igreja Católica, conhece Maria Luiza de Oliveira Pena, formada em filosofia pela UFRJ, professora de Comunicação da instituição, com mestrado e doutorado na PUC, que se tornaria sua esposa em dezembro de 1956. Da união nascem suas três filhas: Maria Tereza, mãe dos netos Luis e Rafael, Ana Luíza e Rosa Amélia.
Nas 491 páginas do livro, Marcílio conta sua trajetória desde a infância até os dias atuais. No final do livro, ele diz:
“Minha vida não seguiu linha reta. Tampouco minha carreira profissional é unilinear. Ao longo do tempo, tracei mais ou menos uma rota, Mas não um planejamento propriamente dito. Assim como no Ministério da Fazenda eu falava que preferia uma política econômica a um ‘planejamento’ econômico, o mesmo se deu no tocante à esfera pessoal.
Desde sempre orientado pela célula familiar nos valores de liberdade e justiça social, arraiguei-me ainda mais nesses princípios, à medida que escolhia em variadas frentes, na área pública ou privada, servir, acima de tudo, aos interesses do país. Fosse, inicialmente apostando na potência da economia criativa (quando esse termo nem existia) das favelas – em um programa-piloto implantado na comunidade de Brás de Pina, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ou nas longas e complexas negociações a partir da embaixada em Washington, em que se discutiam temas intrincados, como a renegociação da dívida externa. E, ainda, nas articulações extremamente sensíveis, que se mostraram cruciais para a gestão como ministro da Economia.
Nesse longo percurso, que já somam 92 anos, considero-me, sem sombra de dúvida, um otimista. Espero seguir trabalhando para tentar ajudar o Brasil naquilo que eu poderia chamar de meta da pedagogia do desenvolvimento sustentável: o desejo de que o país venha a ostentar resultados – econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais – que façam jus a sua grandeza e diversidade.
Volto a San Tiago (Dantas), que nos legou aquela aula magna de civismo e de como semear de otimismo o futuro: Nossa época não poderá criar uma cultura, não poderá deixar às gerações a vir uma herança legítima, enquanto não nos certificarmos de que não é a morte, mas a vida que está no caminho das gerações a vir.”
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Sempre tive uma grande admiração pelo ministro Marcílio. Como jornalista, acompanhei parte de sua carreira. Nos últimos anos, fiquei mais próximo ao frequentar almoços que a querida e saudosa Tia Milu oferecia em sua casa, na rua das Acácias, no Leblon. Em muitos desses almoços, o ministro estava presente, onde tinha a oportunidade de “beber” de seus conhecimentos sobre os rumos do país, suas ideias liberais, sua preocupação com o social. Antes da pandemia, nos seminários de Análise Conjuntural que realizávamos no Centro Cultural da FGV, sempre contávamos com a presença do ministro.
O livro é um importante relato de sua vida e da histórica econômica do país.
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