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Distorções no sistema de saúde

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Os gastos com saúde têm aumentado em todo o mundo. No Brasil, embora tenhamos o Sistema único de Saúde (SUS), boa parcela da população tem um plano de saúde particular que tem sofrido reajustes, muitas vezes, três a quatro vezes superiores à inflação. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 2000 e 2021, os gastos per capita com saúde, a dólar constante de 2021, aumentaram 3 vezes no Canadá, 2,8 vezes no Reino Unidos, 2,6 nos Estados Unidos e 2,2 vezes na Itália.

O Brasil não foge desse quadro. Os gastos aumentaram de US$ 311,6 (8% do PIB) para US$ 761,3 (10% do PIB), no período. É sobre esse aumento de custos e suas causas que Nayara Abreu Julião, Mônica Viegas Andrade e Kenya Noronha, pesquisadoras do Cedeplar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFGM), se debruçam no artigo desse mês de Conjuntura Econômica. Elas já partem da premissa de que não há um consenso na literatura sobre as causas desses crescimento nos gastos com saúde. Mas apontam duas possíveis causas: fatores relacionados tanto à oferta (avanços tecnológicos) quanto à demanda (envelhecimento populacional) por esses serviços.

A situação pode ficar ainda pior por aqui em função do envelhecimento da população, que requer mais cuidados médicos, sobrecarregando o sistema de saúde.

Segundo o IBGE, que reviu para baixo a população brasileira em sua última estimativa, estamos com uma população cada vez mais velha. A proporção de idosos – pessoas com 60 anos ou mais – no total da população brasileira quase duplicou entre 2000 e 2023, pulando de 8,7% para 15,6%. A idade média passou de 28,3 anos, em 2000, para 35,5 anos no ano passado. O IBGE estima que, em 2070, 37,8% da população brasileira, ou seja, 75,3 milhões de pessoas serão idosas.

Em seu artigo elas pontuam que “diante do crescimento dos gastos com saúde, diversos países têm intensificado esforços para aumentar a eficiência e expandir a cobertura dos serviços de saúde, de forma a garantir um atendimento de qualidade à população. Para alcançar esse objetivo, é essencial desenvolver estratégias que mitiguem os problemas de risco moral e indução de demanda, reconhecidos como importantes fontes de ineficiência no setor. O risco moral ocorre quando o indivíduo, de posse do seguro-saúde, altera seu comportamento e passa a utilizar mais serviços do que realmente necessita, devido à maior facilidade de acesso proporcionada pelo seguro, muitas vezes sem custos adicionais diretos. A presença do seguro também pode modificar o comportamento dos prestadores, que tendem a solicitar o uso maior de procedimentos, principalmente exames-diagnóstico, já que o seguro garante o financiamento dos serviços para os pacientes. A intensidade dessa indução de demanda depende da estrutura de incentivos a que os prestadores estão submetidos na relação com a operadora de saúde, especialmente no que diz respeito ao modelo de remuneração adotado”.

Para sedimentar a análise, as autoras citam dois exemplos de procedimentos que elas classificam como claros “sinais de indução de demanda”: a realização de parto cesariano e de ultrassonografias obstétricas.

“As taxas de cesarianas no país atingiram níveis extremamente elevados, sobretudo no setor privado, situando-se entre as mais altas do mundo. No caso da ultrassonografia obstétrica, a discussão gira em torno da priorização desse exame em detrimento de outros exames de rotina do pré-natal, especialmente em gestações de risco habitual. A sobreutilização desses exames é agravada por um contexto de constante avanço tecnológico, no qual a qualidade cada vez maior das imagens de ultrassom atrai muitas gestantes. Exames em 3D e 4D, por exemplo, oferecem uma visualização mais detalhada do feto, e não é raro que as gestantes e seus parceiros busquem por essas imagens como recordações especiais da gestação”.

Apesar desse avanço, estudos mostram que a maioria das mulheres, inicialmente, não expressa o desejo de realizar cesariana, mas optam por esse procedimento ao longo da gestação. “As preferências individuais são frequentemente moldadas pela abordagem e recomendações dos obstetras, que, por sua vez, são influenciados por suas próprias convicções e percepções sobre os riscos e benefícios de cada tipo de parto. Em geral, essas recomendações são pautadas pela experiência profissional dos médicos, por interesses relacionados à conveniência no agendamento da cirurgia, pelo receio de complicações no parto vaginal que possam gerar ações judiciais e pelo modelo de remuneração por procedimento. No caso das ultrassonografias, a lógica do fee-for-service favorece um comportamento oportunista por parte dos médicos, que encontram pouca ou nenhuma resistência por parte das mulheres, muitas vezes ansiosas pela realização do exame. A ultrassonografia obstétrica exemplifica essa dinâmica, em que há, frequentemente, pressão para que os médicos atendam aos pedidos das pacientes e realizem mais exames, mesmo quando não são clinicamente necessários”.

Para entender melhor o intrincado funcionando do nosso sistema de saúde, Nayara, Monica e Kenya investigaram de que forma os contratos de seguro-saúde podem influenciar a realização dos dois procedimentos - a realização de parto cesariano e de ultrassonografias obstétricas. Elas utilizaram registros administrativos de uma operadora privada de saúde com gestão verticalizada na região Sudeste.

Os resultados do estudo

Partos:

Gestantes beneficiárias dos planos com atendimento restrito à rede própria têm 26% menos chances de realizar cesariana em comparação com aquelas que possuem planos de rede ampla. Esse efeito foi também avaliado considerando o hospital em que o parto foi realizado. Os resultados reforçam a importância da rede de prestadores uma vez que as chances de parto cirúrgico são até duas vezes maiores nos hospitais da rede credenciada em relação aos hospitais da rede própria. A prática de indução de demanda é também constatada pelas maiores chances de cesárea durante os dias da semana e entre as mulheres acompanhadas pelo mesmo médico tanto no pré-natal quanto no parto.

Ultrassom:

A frequência de realização de ultrassons obstétricos também varia conforme o contrato de seguro, novamente evidenciando a importância da estrutura da rede de atendimento. As mulheres inscritas nos planos com rede restrita apresentam uma redução de 19% no uso de ultrassonografias em comparação àquelas com acesso à rede ampla. Essa redução pode chegar a 30% quando se considera apenas os ultrassons solicitados pelo médico responsável pelo pré-natal. Ressalta-se que a demanda por esses exames apresenta baixa sensibilidade em relação aos diferentes valores da coparticipação. 

Para as pesquisadoras, “esses resultados são fundamentais para a compreensão dos fatores que influenciam o uso de serviços de saúde e para avaliar o impacto da verticalização em contextos propícios à indução de demanda. Nos últimos dez anos, a ANS, em parceria com o Ministério da Saúde, tem implementado uma série de medidas para mitigar os efeitos da assimetria informacional e reduzir a realização de cesarianas desnecessárias. Apesar dessas iniciativas, as taxas permanecem persistentemente elevadas. A experiência da operadora com gestão verticalizada reforça a importância de desenvolver mecanismos que promovam a colaboração entre os diversos atores do sistema de saúde, buscando equilibrar eficiência econômica e qualidade assistencial”.

Leia na íntegra o artigo.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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