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Uma carreira dedicada à FGV

Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro

Na quarta-feira (31/7), a Fundação Getulio Vargas e o país perderam o economista Julian Alfonso Magalhães Chacel, diretor da Câmara FGV de Mediação e Arbitragem. Nascido em março de 1928, de pai espanhol e mãe brasileira – seu pai era oficial do Exército espanhol e servia junto à legação, ainda não era embaixada – Uma carreira dedicada à FGV, da Espanha no Brasil e na Argentina. Chacel teve sua carreira umbilicalmente ligada à FGV. Na edição dos 70 anos da Conjuntura Econômica, a revista destaca que Chacel, que dirigiu o Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) por três décadas, de 1964 a 1994, nascido como Núcleo de Economia da FGV, onde foi estagiário, foi ator relevante na criação e expansão da Fundação, que nasceu pelas mãos de Luiz Simões Lopes, um gaúcho de Pelotas, do Rio Grande do Sul, que em 1944 presidia o Departamento de Administração e do Serviço Público (Dasp), e “braço direito” do então presidente Getulio Vargas.

Lopes criou a FGV com o objetivo de dotar o país de um centro de formação de pessoal civil de alto nível, uma usina de cérebros, para alimentar a administração pública e também o setor privado. “Talvez pela própria natureza [autocrática] do regime, não se imaginava que alguém do Senado ou da Câmara de Deputados viesse a ser um ministro de Estado”, dizia Chacel na edição comemorativa dos 70 anos da revista. “Na época”, lembrava, “os poderes da República estavam verdadeiramente separados”.

Simões Lopes, ele mesmo uma espécie de superministro de Administração e Economia, foi o primeiro presidente da FGV, cargo que ocuparia por 48 anos, até 1992. Os primeiros três anos da FGV, segundo lembrava Chacel, foram dedicados basicamente à tarefa de formar profissionais de administração pública e a selecionar e orientar esses profissionais nos rumos da carreira estatal. Paralelamente, havia uma forte identidade entre Simões Lopes e o economista, engenheiro de formação, Eugenio Gudin, que foi o primeiro presidente do IBRE, em 1951. Dessa identidade nasceria o Núcleo de Economia da FGV, a partir da constatação de que, em matéria de economia, “o Brasil era uma nave que não tinha instrumento de navegação”, ou seja, as decisões eram tomadas sem que houvesse instrumentos de medição precisos que pudessem calçar o planejamento. O próprio Núcleo, segundo contou Chacel, fazia suas reuniões em fins de tarde, após o dia de trabalho, escancarando esse espírito de improviso. Dele faziam parte, sob o comando de Gudin, nomes que entrariam para a história econômica do Brasil, como Octavio Gouveia de Bulhões, Antônio Dias Leite Jr., Genival de Almeida Santos. Estudante de economia na recém-criada Escola de Economia da Universidade do Brasil (hoje UFRJ), Julian Chacel foi levado por Dias Leite para, como estagiário da Conjuntura, aprender com o grupo. O Núcleo criaria logo depois um Centro de Análise da conjuntura econômica, cujo comando seria entregue ao engenheiro Richard Lewinsohn, nascido na Polônia, outro que migraria das obras de construções para os estudos econômicos. Lewinsohn era então a única pessoa no Brasil que fazia estimativa da renda nacional, de forma rudimentar, como contou Chacel, a partir dos números de um tributo que existia na época, o Imposto de Vendas e Consignações (IVC). Lewinshon seria o diretor do Boletim e o redator-chefe seria Américo Barbosa de Oliveira. Foi a partir da missão recebida que Lewinsohn lançou, em novembro de 1947, o primeiro número do Boletim de Conjuntura que passaria, anos depois, a ser a atual revista Conjuntura Econômica. “As incertezas do mundo do pós-guerra tornam mais necessária do que nunca a observação contínua e vigilante da conjuntura econômica nacional e internacional”, escreveu Eugenio Gudin no artigo “Os Índices da Conjuntura Econômica”, uma espécie de editorial de lançamento da publicação. “Vários países possuem instrumentos especializados, com objetivos, análogos a observatórios meteorológicos, de levantar dados, analisá-los e oferecer (...) a curtos intervalos indicações de barômetro econômico”, dizia Gudin, valendo-se de analogia com as observações climáticas que até hoje, certamente menos que a economia, guarda sua dosagem de imponderabilidade e imprecisão. Chacel contou: “As incertezas do mundo do após-guerra tornam mais necessária do que nunca a observação contínua e vigilante da conjuntura econômica nacional e internacional”.

Medir a taxa de inflação foi outra iniciativa da equipe. É dessa época a criação do Índice Geral de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), hoje o índice que media a inflação mais antigo em vigência do Brasil (a inflação oficial do país passou a ser medida pelo IPCA, do IBGE). O diretor da Câmara de Arbitragem da FGV contou que sua aproximação com Lewinshon aconteceu em um primeiro momento na condição de tradutor. O diretor do Boletim escrevia artigos para o jornal Correio da Manhã, mas como não dominava a língua portuguesa para se sentir seguro na escrita, fazia os textos em francês. Chacel, que depois de concluir a faculdade de economia no Brasil faria doutorado na França, era chamado a passar o texto para o português. “Ele me chamava de estudante. ‘Estudante, traduz isso aqui para mim!’, gritava do outro lado da sala.” Pouco antes da criação do Boletim de Conjuntura, conta Chacel, decidiu-se criar outra publicação, a Revista Brasileira de Economia (RBE),  destinada a publicar “artigos e textos dentro do mundo fechado da teoria econômica”. A RBE também segue em atividade, editada pela Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE) da FGV. Segundo o economista, embora o Boletim tenha nascido como “um folheto tosco e mimeografado, sem o cuidado gráfico de hoje”, ele foi “muito bem recebido pelo público a que se destinava”. O instrumental para medições de que fala Gudin na apresentação da Conjuntura, e que ganharia amplitude, robustez, diversidade de fontes e cada vez maior confiabilidade ao longo dessas sete décadas foi enriquecido.

Em longa entrevista para o Centro de Pesquisa de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da FGV, para o livro Memórias do IBRE, organizado pelas pesquisadoras Marly Motta e Dora Rocha (2008), o economista conta que, embora pioneiro, o Núcleo de Economia da FGV tinha um elevado grau de informalidade que “gerava demandas” a partir de debates que eram, na realidade, “conversas”. Foi então que se decidiu criar a Equipe de Renda Nacional, esta sim, estruturada e com um grupo permanente. A Equipe de Renda Nacional viria a se transformar, a partir de 1951, no Instituto Brasileiro de Economia, o IBRE. O novo órgão assumiria entre suas funções a tarefa de editar a Conjuntura Econômica e a RBE. Esta passaria anos depois para a esfera da EPGE. Também em 1951 ficaria concluído o trabalho de Dias Leite e de Almeida Santos sobre a renda nacional que, dadas as suas características, foi publicado na RBE e não na Conjuntura. Chacel contou aos pesquisadores do CPDOC que o trabalho ganhou grande repercussão e que foi a partir dele que vieram ao Brasil especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), instituição multilateral também nascida após a Segunda Guerra Mundial, para auxiliar na estruturação do Sistema de Contas Nacionais brasileiro que anos depois passaria das mãos da FGV para as do IBGE (1986). O mais longevo diretor do IBRE ressaltou que o Brasil descobriu a análise macroeconômica a partir do livro Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, do britânico John Maynard Keynes.  Mas, segundo Chacel, as primeiras referências ao trabalho de Keynes no Brasil surgiram no livro Princípios de Economia Monetária, de Gudin, justamente o símbolo brasileiro da corrente dita liberal ou ortodoxa, que enfatiza em seu projeto de desenvolvimento o papel das forças de mercado. O ex-diretor do IBRE esclareceu em seu depoimento que a contribuição de Keynes para a organização do sistema de medições da economia brasileira passa ao largo desse debate. “A questão aí é o salto do micro para o macro, em vez de demandas individuais, o agregado de um conjunto”, explicou. De acordo com Chacel, “Hoje, o Brasil evoluiu muito e dispõe de dados bem mais complexos”, destacando, além dos agregados econômicos propriamente ditos, o desenvolvimento de indicadores sociais, lembrando que no passado o IBRE era acusado de não se preocupar com o social. “Hoje o IBRE é diferente, dispõe de uma força de trabalho mais ampla e de melhor formação teórica”, afirma Chacel, acrescentando que essa equipe tem a econometria como sua principal ferramenta. “Eles buscam explicações sobre o funcionamento da economia pela matemática. A gente não tinha essa ferramenta”, situa. “O IBRE de hoje não tem nada a ver com o do meu tempo”, comparou o diretor da Câmara de Arbitragem da FGV, acrescentando que a Conjuntura Econômica também se modernizou, não apenas graficamente, mas também como produtora e difusora de informações econômicas.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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