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Postado por Conjuntura Econômica
A tragédia
Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro
A tragédia no Rio Grande do Sul, além de ser mais um contundente sinal de que é cada vez mais urgente tomar medidas, a nível mundial, para enfrentar as mudanças climáticas – não vou entrar aqui na discussão de que a devastação no Rio Grande do Sul poderia ter sido menor se uma série de erros tivessem sido evitados anteriormente –, mostra uma outra face, já conhecida, mas que ganha maiores proporções com a tragédia: a rigidez do Orçamento da União.
Tirando as pessoas que vêm utilizando a angústia do povo gaúcho para disseminar fake News, a população brasileira está em uma enorme corrente de solidariedade aos milhares de desabrigados, fazendo doações de todas as espécies. Não resta dúvida que muito dinheiro será necessário para reconstruir o que foi e está sendo destruído pelas enchentes. E o governo federal, como qualquer cidadão espera de seus governantes, está aprovando medidas de ajuda ao estado, que vão desde perdão da dívida, promessa de construção de casas, auxílio calamidade, suspensão do pagamento de contas de luz – parte do estado ainda está às escuras –, entre outras.
Já com as contas públicas que não fecham – o governo jogou para o ano que vem um maior ajuste, com as despesas crescendo mais que as receitas –, a tragédia no Sul do país vai pressionar ainda mais o caixa da União. De onde sairá todo esse dinheiro?
O grande problema é que nosso Orçamento é engessado. Os gastos obrigatórios federais, ou seja, aqueles que não podem ser cortados pois já estão carimbados, chegaram ao redor dos 98% dos gastos primários, ou seja, aqueles voltados à Saúde, Educação, incluindo o Sistema Único de Saúde (SUS), custeio de universidades, além de gastos previdenciários e sociais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Seguro Desemprego. Dessa conta, temos que tirar os encargos financeiros da dívida pública.
Essa rigidez, com a União com cada vez menos margem de manobra para enfrentar situações como a do Rio Grande do Sul, é agravada pelo grande avanço das emendas parlamentares. Estudo feito por Carolina Resende, do Observatório de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV IBRE, mostra um expressivo crescimento dessas emendas: em 2024, o total autorizado foi de R$ 44,67 bilhões, quase sete vezes mais do que o valor empenhado em 2014, em valores nominais. O assunto foi tema da Carta do IBRE de abril e matéria do Valor Econômico (link aqui, com acesso restrito a assinantes).
Manoel Pires, coordenador do Centro, em entrevista ao Valor Econômico, enfatizou que “é muito difícil voltar ao que era. A experiência de democracias mais avançadas, com processos orçamentários fortalecidos, mostra papel muito mais relevante do Poder Legislativo em coordenar políticas públicas com o Executivo do que o que vemos aqui”, compara Pires. “O interesse do Legislativo em avançar no orçamento é compreensível, faz parte da democracia”, diz. Para Pires, é válida a crítica de que o grande volume de emendas gera descoordenação na ação pública porque os gastos não são alocados em programas estruturados. Isso, explica, se insere no contexto de rigidez orçamentária cada vez maior, com aumento de despesas obrigatórias.
Evolução das emendas parlamentares no Orçamento Federal
Em participação (%) no conjunto das despesas discricionárias
Fonte: Siop, com elaboração do FGV IBRE De 2014 a 2023, consideram-se valores empenhados. Para 2024, consideram-se valores autorizados.
Destino dos recursos em 2023
(% por área)
Fonte: Siop, elaboração FGV IBRE. *Em encargos especiais, 98% se refere ao Pix Orçamentário.
Já em 2021, artigo de Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, Marcos Mendes, pesquisador do Insper e Fábio Giambiagi, pesquisador associado do FGV IBRE, publicado na revista Conjuntura Econômica, alertava para o crescimento dessas emendas em um processo de progressiva captura de recursos do Orçamento da União, e uma política de gastos mal direcionados e sem nenhuma fiscalização (veja o artigo aqui).
Relembre: A enrascada fiscal.
É sempre bom lembrar que o aumento dessa rigidez orçamentária não começou agora. Faz parte de um processo, iniciado com a Constituição de 1988, que aprovou uma série de benefícios sem que houvesse receitas suficientes para bancá-los. Não estou defendendo aqui erros no que foi feito, já que o Estado deve suprir as necessidades da população que paga seus impostos. Hoje temos uma alta carga tributária, sem retornos adequados. Mas não se pensou em como pagar esses benefícios. Também houve aumento de gastos com uma política de aumento real do salário mínimo, com forte impacto sobre os gastos da Previdência, servidores com altos salários, entre outras coisas. Não há como ter receitas para bancar tudo isso.
Samuel Pessôa, pesquisador associado do FGV IBRE, defende já há algum tempo que a sociedade brasileira optou por esse tipo de contrato social que, como estamos vendo, fica insustentável.
Para terminar esta breve reflexão, como é comum por aqui, é preciso cuidado, vigilância e transparência de que forma serão gastos os recursos destinados ao Rio Grande do Sul. Estamos cheios de exemplos de desvios de dinheiro público em períodos em que os mais necessitados precisam de ajuda.
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As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.