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Postado por Conjuntura Econômica
Fazer a lição de casa ficou mais difícil
Por Claudio Conceição, do Rio de Janeiro
Fiquei pensando sobre o que escrever neste espaço, já que ter certeza das coisas se tornou quase impossível. A única certeza que tenho é de que tudo mudou. As coisas já vinham tomando novos caminhos, mas a pandemia virou tudo de cabeça para baixo. Como já escrevi, a sensação é de que os modelos econômicos utilizados hoje não refletem mais o que mostravam antes da pandemia. E mais: fazer previsões se tornou uma dor de cabeça para os economistas.
O mundo real agora é outro, mas não sabemos qual é, para onde está indo. Mesmo na nossa vida pessoal, tudo mudou, desde as relações de trabalho, relações pessoais, e isso ainda não se assentou.
Também mudou a geopolítica, a logística, o equilíbrio de forças que pode ficar ainda mais complicado com o resultado das eleições nos Estados Unidos. Se Trump vencer, será um divisor de águas, com o quadro ficando ainda mais complexo e incerto: mais protecionismo, aumento de tensão com a China, risco de ampliação de conflitos no Oriente Médio. A guerra entre Israel e o Hamas desencadeou uma onda de protestos mundo afora, em apoio à causa palestina. Milhares de jovens saíram às ruas ou ocuparam universidades, como ocorreu na Universidade de Columbia, em Nova York. As redes sociais espelham esse descontentamento, a raiva e desilusão com o que vem ocorrendo. Mas será que essa “perda de esperança” tem explicação com o conflito no Oriente Médio? Como aconteceu aqui nas manifestações de 2013, será que elas ocorreram pelo aumento das tarifas de ônibus? Certamente que não. Foi só o gatilho para detonar uma insatisfação maior, que ninguém até agora conseguiu avaliar com exatidão.
Por aqui, parece que, apesar de tudo o que vem ocorrendo, muita gente não percebeu que o mundo mudou.
No dia 1º de maio, Dia Mundial do Trabalho, o governo, de última hora, resolveu comemorar a data no estádio do Corinthians, time do presidente Lula. Convocado pelas centrais sindicais, o encontro foi um fiasco, não reunindo mais que 2 mil pessoas, num dia de calor escaldante na capital paulista. O que aumentou o arsenal de munição da oposição da direita em suas redes sociais.
Há muito tempo que as centrais sindicais perderam sua relevância no País. Em 2017, no governo Michel Temer, foi aprovada a Reforma Trabalhista, sem que nenhum movimento de porte ocorresse. O mesmo aconteceu com a Reforma da Previdência, em 2019. E a não ser um punhado de gatos pingados na frente do Congresso quando da votação, não houve nenhum engajamento de protesto ou capacidade para isso. E sempre que há reformas, alguém sai perdendo. Nos dois casos, os trabalhadores.
Meu amigo Vinicius Torres, da Folha de S. Paulo, escreveu uma primorosa coluna na edição de 1º de maio, em que ressalta que “a esquerda deixou de falar com o mundo dos trabalhadores e com o povo da rua”. Isso não só no Brasil, como em várias partes do mundo, abrindo espaço para o avanço do populismo, de candidatos de extrema direita. Perderam a mão das mudanças que estão ocorrendo no mundo, usando os mesmos refrões e técnicas utilizadas há mais de 20 anos.
Torres mostra que no dia 1º de maio de 2010, quando Lula apresentou Dilma Rousseff como sua sucessora, eles foram a uma festa da Força Sindical, que era rival da CUT, lulista, mas aliada ao governo. A Polícia Militar (PM), calculou 450 mil pessoas no evento. Catorze anos depois, no mesmo 1º de maio, apenas 2 mil pessoas.
Isso em um contexto em que a taxa de desemprego está em queda, a economia deve crescer entre 1,5% a 2% este ano, o salário-mínimo é reajustado acima da inflação, há repasses para programas sociais, a agência de classificação de riscos Moody’s elevou de estável para positiva a nota de risco do Brasil, por entender que as sinalizações para o crescimento do PIB são mais robustas, em função das reformas feitas em vários governos.
Mesmo com tudo isso, a popularidade do presidente está em queda. Pesquisa Datafolha de março mostra que cresceu o percentual de pessoas que consideram o governo ruim ou péssimo – passou de 30% em dezembro para 33% em março. Quem considerou o governo ótimo ou bom também caiu em participação no período – de 38% para 35%. E ficou estável, em 30% das respostas, quem considerou o governo Lula como regular. Outros institutos de pesquisa também mostram queda na popularidade do presidente.
Menor popularidade e perda da importância das centrais sindicais, mantidas as atuais condições de falta de maior clareza e consistência nas políticas públicas do governo, pode minar, ainda mais, o poder de fogo da esquerda, já meio chamuscado. “Não há políticas claras, há questões de equilíbrio de forças entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Da mesma forma que em nossa vida, em que nos momentos de incerteza buscamos segurança, os investidores também perseguem essa segurança”, diz Maria Silvia Bastos, ex-presidente do BNDES e da CSN, em entrevista à Conjuntura Econômica que circula este mês.
As fortes mudanças estruturais no mercado de trabalho é a ponta do iceberg da perda da importância das centrais sindicais, principal sustentáculo do movimento de esquerda, em especial o Partido dos Trabalhadores (PT), que nasceu em São Bernardo do Campo, sob a liderança de Lula, nascido em outubro de 1945, em Garanhuns, interior de Pernambuco. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, fundou o PT em 10 de fevereiro de 1980, com amplo respaldo dos movimentos sindicais.
O Observatório da Produtividade Regis Bonelli do FGV IBRE mostra como o mercado de trabalho mudou no País. No ano passado foram abertas 3,87 milhões de empresas no Brasil. O que chama a atenção é o explosivo crescimento dos Microempreendedores Individuais (MEIs): surgiram 2,89 milhões em 2023, o que corresponde a 74,6% da quantidade de empresas abertas. Esse percentual era de 8,4% em 2009.
Há várias razões que podem explicar isso. Com MEI, paga-se menos imposto. O mercado de trabalho não conseguia absorver todo o contingente de mão-de-obra. Mas, especialmente, a perda de confiança das pessoas no Estado que cobra muito imposto e não retribui com os serviços esperados o que é tirado do bolso dos cidadãos.
Segundo o IBGE, há cerca de 5,9 milhões de empregadas domésticas, das quais 75% sem carteira assinada, e mais 19 milhões que fazem bico, trabalham por conta própria, sem CNPJ. E algo ao redor de 1,7 milhão de brasileiros que trabalham em aplicativos, sem nenhum amparo. É muita gente, onde os discursos não chegam, ou se chegam, não estão sendo ouvidos.
Evolução da quantidade de novas empresas no Brasil (milhões)
Evolução da participação das aberturas de MEI’s no total de empresas abertas – Brasil
Abertura de empresas por natureza jurídica
Fonte: PNAD, IBGE e FGV IBRE.
E é nesse contexto que os movimentos de esquerda devem se remodelar, adaptando-se às mudanças que o mundo está atravessando, onde a volatilidade, o surgimento de novas tecnologias e o avanço da Inteligência Artificial, onde máquinas estão substituindo as pessoas, devem ser avaliadas e inseridas nos programas de políticas públicas. Fazer o dever de casa, num mundo que muda com muita rapidez.
É como no filme magistral A Grande Beleza, quando Jep Gambardella, o jornalista anfitrião que mora em um apartamento com vista para o Coliseu, diz ao ver passar um trenzinho de pessoas em sua festa de aniversário: “É o trenzinho mais bonito de Roma. Não leva a lugar algum”.
Espero que isso não ocorra por aqui.
Agradeço a Paulo Peruchetti, pesquisador do FGV IBRE, pelos dados para a elaboração dos gráficos.
Inscreva-se no X Seminário de Política Monetária, que contará com a presença do presidente do Banco Central e economistas convidados. Na ocasião será prestada uma homenagem ao professor Affonso Celso Pastore, falecido recentemente.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.