Desafios para a aviação civil brasileira

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Apesar de o Brasil ter características propícias para uma ampla exploração do transporte aéreo civil, como dimensão continental e contar com a sétima maior população mundial, ainda se voa pouco no país. Dados da Associação Internacional do Transporte Aéreo (Iata, na sigla em inglês) indicam que no primeiro semestre de 2024 o Brasil registrou 0,44 viagem per capita, enquanto nos Estados Unidos foram 2,6 viagens per capita; no Chile, 1,21; na Colômbia, 0,78 e, no México, 0,72.

O potencial de expansão dessa atividade, entretanto, conflita com um panorama de empresas em crescente e profunda crise financeira no Brasil, como aponta o economista José Roberto Afonso, professor do IDP, em artigo na Conjuntura Econômica de setembro. Parte desse quadro foi evidenciada recentemente em levantamento do jornal O Estado de S. Paulo sobre a aviação regional brasileira, que mostrou a perda de quase 30 companhias desse segmento desde 2000, deixando uma demanda parcialmente descoberta. Essa conclusão é tirada diante da queda da participação da aviação regional no total de passageiros transportados: de 7,57% do mercado doméstico em 2000 para 4,8% em 2023. A tendência de concentração de mercado tampouco leva a perspectivas de uma oferta ampla a preços adequados.

Em seu artigo, Afonso defende que para reverter o atual quadro é preciso políticas públicas estruturantes que vão muito além do recém-criado Voa Brasil, programa que prevê passagens aéreas de até R$ 200 o trecho para aposentados do INSS, independentemente da faixa de renda.

Um dos pontos sensíveis destacados por Afonso, que merece ser observado, é o volume de processos judiciais registrados contra as companhias: uma ação a cada 227 passageiros, enquanto nos Estados Unidos essa relação é de uma para cada 1,2 milhão de viajantes. A hipótese levantada pela Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), a partir de levantamento realizado junto à plataforma SpotLaw, é de que “o volume de ações é inflado pelo ambiente legislativo brasileiro associado a uma litigância predatória impulsionada por ferramentas de marketing digital, compra de créditos judiciais e um comércio de vouchers de viagens”. De acordo à Abear, completa Afonso, “a assistência a passageiros, indenizações extrajudiciais e condenações judiciais chegam a responder por 1% dos custos operacionais da aviação brasileira”, ao que se soma o ônus da insegurança jurídica gerada em novos investidores e operadores.

O segundo apontado por Afonso é o tributário. Algo que, de acordo à Iata, é um problema na América Latina em geral. Enquanto na média global as taxas, encargos e impostos somam 27%, na região esse número é de 44%. Em seu artigo, Afonso afirma que “a reforma tributária do consumo, que se desdobrou para fase de regulamentação, pode resultar em duas sobrecargas”. Ele diz que no caso do imposto sobre bens e serviços, optou-se por aumentar a incidência do transporte aéreo de passageiros, seja nas viagens domésticas ou para o exterior, enquanto “no resto do mundo, o imposto sobre valor adicionado (IVA) não incide sobre tal serviço na maioria dos países, sobretudo por ser visto como um meio crucial para integração regional, ainda mais naqueles muito extensos e populosos”. Para Afonso, é algo ingênua a ideia de que “ao incidir imposto e contribuição sobre bens e serviços (IBS/CBS) sobre passagens aéreas, como no caso de passagens de ônibus ou metrô, se conseguirá taxar proporcionalmente mais aos viajantes mais ricos do que os mais pobres. Será fonte de inequidade”. Ele ainda aponta que isso poderá incentivar um aumento da participação das viagens corporativas no total - graças àqueles que podem emendar uma viagem a trabalho com um período de descanso, prática conhecida como bleisure travel. “Em 2015, ano da última Matriz de Insumo Produto publicada pelo IBGE, já se verificava que o consumo das famílias respondia por apenas um quinto do total do produto do transporte aéreo no País; e, dentro consumo intermediário, já chamava a atenção que atividades voltadas para serviços pessoais ou dominadas por serviços profissionais respondiam por cerca de um quarto do que o setor produzia”, ilustra Afonso.  “Paradoxalmente, o mesmo governo que desejaria tanto popularizar o acesso à aviação para classe média e baixa, é o mesmo que cria regras tributárias que imporão um forte freio para tal pretensão”, defende, reforçando ainda a possibilidade de que isso a competitividade das companhias áreas nacionais vis-à-vis as estrangeiras.

Outro ponto de atenção de Afonso relacionado à reforma tributária é quanto ao imposto seletivo que, defende, deveria distinguir aeronaves pelos tipos de combustíveis, bem como diferenciar combustíveis (no lugar dos veículos que os usam), tributar o consumo e não sua produção. “Ideal mesmo seria isentar desde já o querosene verde para estimular os investimentos inovadores no desenvolvimento desse produto e produção.”

Afonso ainda ressaltou o impacto de fusões de grandes companhias em termos de concentração de mercado. “A busca de solução para essa situação é urgente, mas não deve vir mediante subsídios públicos ou por fusões das grandes empresas. Isso porque empresas de grande escala e atuações relevantes, como são as 3 principais do nosso mercado aéreo, podem recorrer à fusão ou aquisição sob o argumento falacioso de que só assim poderá melhorar a competitividade do segmento. Em verdade, isso só resultará em duopólio e eliminação da concorrência. Subsídios não resolverão o problema”, afirma, defendendo que “não é o cidadão que deve arcar com a recuperação das perdas financeiras dos acionistas da companhia”, o que implica a necessidade de se proteger o consumidor brasileiro contra os efeitos de uma possível concentração no setor. “Não custa dizer que, por muito menos, órgãos defensores de concorrência nos Estados Unidos e na Europa vetaram recentemente tentativas de fusões entre companhias aéreas, pois resultaria em tarifas mais altas e menos opções para milhões de viajantes.”

Afonso destaca que, se bem equacionadas, as oportunidades para o Brasil nesse mercado são ainda mais amplas do que para a maioria dos países emergentes. “Somos dos raros emergentes a ter uma indústria aeronáutica com produção e exportação de peso no mundo. Este sucesso pode ser repetido no caso do tão desejado querosene verde (SAF, na sigla em inglês), que significaria levar o sucesso do etanol do carro para o avião, mais uma vez com o Brasil podendo ser dos maiores produtores do mundo, inclusive também ser dos maiores exportadores”, cita, apontando a uma “colaboração efetiva entre diversos atores da cadeia produtiva, abrangendo tanto os setores público quanto o privado”.

Leia a íntegra do artigo de José Roberto Afonso.

 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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